'Empresários brasileiros não podiam ir a lugar algum, porque Bolsonaro não era bem quisto', diz Ricupero

'Empresários brasileiros não podiam ir a lugar algum, porque Bolsonaro não era bem quisto', diz Ricupero

Ex-ministro e ex-embaixador do Brasil nos EUA afirmou que demanda reprimida de empresários disputou espaço na comitiva de Lula à China, e que presidente não vai poder tratar de temas como a democracia em Pequim

Porto Velho, RO -
Com um extenso currículo que vai desde ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos até ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente e ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), Rubens Ricupero afirma que há uma demanda reprimida de empresários que querem fazer parte da comitiva do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na viagem à China. A estimativa do governo brasileiro é que cerca de 300 representantes do setor privado estarão ao lado de Lula.

Em uma comparação com a visita de Lula a Washington, no mês passado, Ricupero destaca que pelo menos um tema não será tratado em Pequim: a democracia. O diplomata também diz que a China não tem credibilidade para ajudar em um acordo de paz entre Rússia e Ucrânia, dada sua proximidade com os russos.

Qual a importância da visita de Lula à China?

Essa viagem completa o programa anunciado por Lula logo no início. Ele falou que iria dar prioridade às visitas à Argentina, aos Estados Unidos e à China. As duas primeiras ele já fez e foi bem rápido. Não houve tempo de preparação, como aconteceu em relação à China. Lula fez visitas de trabalho nas viagens anteriores, e com a China será visita de Estado. 

Lula vai com uma grande comitiva e será recebido com todo aquele tipo de hierarquia, e a expectativa é que assinem mais de 20 acordos. Há brigas entre empresários que querem fazer parte da delegação. Há uma demanda reprimida, porque durante anos os empresários brasileiros não podiam ir a lugar algum, porque Bolsonaro não era bem quisto. Mas tenho a impressão que o principal sentido dessa visita é restabelecer com a China uma relação que havia no passado.

O senhor se refere ao governo anterior?

Na época do ex-presidente Jair Bolsonaro, as relações com a China estiveram num ponto muito baixo, tanto da parte de Bolsonaro, de sua família e dos ministros. Antes mesmo de ser presidente, Bolsonaro foi a Taiwan com os filhos e, durante sua presidência, havia da parte dele muita hostilidade à China. Houve uma reunião ministerial com ofensas à China que o Supremo não autorizou a divulgação, mas com certeza os chineses tomaram conhecimento. 

Eduardo Bolsonaro (deputado, filho do ex-presidente) culpou a China pela Covid e tentaram até expulsar o embaixador chinês. A relação chegou a um ponto complicado. Embora os chineses não tenham abertamente criado uma crise ostensiva, não tenho dúvida que muita coisa se fez na época como represália, como o atraso no fornecimento de matérias-primas para medicamentos. Com a troca de chanceleres (saiu Ernesto Araújo e entrou Carlos França), o governo brasileiro passou a ser mais cuidadoso.

Apesar de todos os preparativos de Lula e da importância que se dá à ida dele à China, os EUA tiveram um papel importante no apoio à democracia brasileira.

No caso dos EUA, os americanos queriam que Lula fosse a Washington antes da posse. A viagem de Lula àquele país (Lula se reuniu com o presidente Joe Biden em 10 de fevereiro) foi muito dominada pela democracia. Antes mesmo da eleição, os americanos deixaram claro que não aceitariam golpe no Brasil. 

Em segundo lugar, entrou um tema que não existia antes na agenda bilateral, que é o meio ambiente. Há expectativa sobre a adesão dos EUA ao Fundo Amazônia, mas quem mais contribui é a Noruega. O valor dado pela Alemanha é muito menor. O problema do fundo nunca foi dinheiro. Essa ideia de esperar dinheiro dos americanos existe desde quando eu era menino. O Brasil não recebe ajuda dos EUA desde a ditadura militar, no governo Costa e Silva. Eles não dão dinheiro para ninguém.

Que temas vão predominar nos contatos de Lula com o presidente Xi Jiping, em sua opinião?

A reunião será dominada pela importância da temática econômico-comercial. Mas com a China é diferente. O crescimento da economia chinesa marcou muito os dois primeiros governos do Lula. A China deu início ao superboom das commodities logo quando Lula tomou posse, em 2003. Em 2009, penúltimo ano do governo Lula, a China se tornou o maior parceiro comercial do Brasil. Até então, os EUA ocupavam essa posição. 

E a Ásia tem uma importância muito grande: os países do continente compram 42% das exportações brasileiras. Não só a China, mas Singapura, Bangladesh, Malásia, Tailândia e outros têm grande peso nas nossas relações comerciais.

Lula está preocupado com a falta de dinheiro para investimentos no Brasil. A China, que já é um grande investidor, pode dar uma ajuda nesse campo também?

Acho que o governo deveria se concentrar na atração de investimentos chineses. O Lula está preocupado com a inflação e os juros altos, a questão fiscal, a falta de dinheiro para investir. A China é a maior fonte de investimentos do mundo. Tanto que criou o Novo Banco de Desenvolvimento do Brics (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). 

A China tem investido no Brasil em áreas como exploração de petróleo, distribuição de energia, mas poderia expandir os investimentos para obras de infraestrutura em geral. E o Brasil, ao contrário da Argentina, por exemplo, não aderiu à Nova Rota da Seda (plano de investimentos proposto pela China que engloba 65 países).

Quem sabe a adesão não estaria em um dos acordos que serão assinados em Pequim? Toda vez que há uma viagem como essa, sempre são anunciadas coisas mirabolantes que não se concretizam. Falar de democracia com a China como os EUA não vai acontecer. Tampouco acredito em acordo ambiental.

Lula chegará a Pequim poucos dias depois de uma visita do presidente chinês a Moscou. Lula propõe um plano de paz para acabar com a guerra na Ucrânia. O que se pode esperar da viagem nesse campo?

Pode ser que haja algum tipo de iniciativa pela qual Lula peça aos chineses um esforço de mediação para pôr fim à guerra na Ucrânia, mas tenho minhas dúvidas se isso pode funcionar. Os chineses são bastante próximos dos russos e uma mediação chinesa não é considerada séria por outros países. A China anunciou um plano de vários pontos para a Ucrânia e os russos não vão retirar suas tropas daquele país.

O mundo está muito diferente de quando Lula esteve na China pela última vez, há mais de dez anos?

Todos mudaram: o mundo, a China e o Brasil. A China continua um país muito importante, cada vez mais. Um fato relevante foi a mediação de um acordo entre Irã e Arábia Saudita. Antes, a China tinha um perfil mais discreto e conseguiu um acordo que os americanos não teriam condições de conseguir. O Brasil sem Bolsonaro vai presidir o G20 (grupo formado pelas maiores economias do mundo) em 2024, estará à frente do banco do Brics. O Brasil volta a ter importância como país na esfera multilateral.


Fonte: O GLOBO

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