Pequenas e turbulentas, Ilhas Salomão viram nova peça da disputa entre China e EUA no Pacífico

Pequenas e turbulentas, Ilhas Salomão viram nova peça da disputa entre China e EUA no Pacífico

Antigo domínio britânico, arquipélago já viveu intervenção australiana e acaba de assinar acordo de segurança com Pequim; Washington e aliados buscam manter sua esfera de influência intacta

Porto Velho, RO
— Quase do nada, um país remoto do Oceano Pacífico com nome de rei bíblico entrou no radar do Ocidente na disputa com a China, numa demonstração de que mesmo as menores peças do tabuleiro podem alterar o jogo geopolítico. 

As Ilhas Salomão, um arquipélago com território total equivalente ao de Alagoas e população cinco vezes menor que a do estado brasileiro, viraram destaque no noticiário mundial ao estender a mão a Pequim, que atendeu ao chamado.

Para alarme de vizinhos como Austrália e Nova Zelândia — mas também dos Estados Unidos, a potência naval dominante no Pacífico — o pequeno país confirmou a assinatura de um acordo de segurança com Pequim, provocando um novo choque de ansiedade sobre a ascensão do poderio militar chinês. 

Negociado em segredo, o pacto veio a público quando um esboço foi vazado por um grupo de oposição nas Ilhas Salomão que rejeita a crescente influência da China no país.

Embora os termos do acordo não tenham sido publicados, se a versão final não foi modificada ele permitirá que a China atraque navios militares nas Ilhas e envie soldados para treinar a polícia local. O que tira o sono dos EUA e de países da região é que o pacto leve à instalação de uma base militar chinesa — algo que ambos os países signatários negam. 

Mesmo que isso não ocorra, o acesso militar da China à região criaria um precedente com potencial para mudar as regras do jogo, na visão de especialistas. Como em tudo o que cerca a ascensão da China, há ansiedade justificada e um tanto de paranoia.

Protetorado britânico até 1978, quando tornaram-se um país independente, as Ilhas Salomão abrigam quase 700 mil habitantes e mais de 60 idiomas, num arquipélago marcado há décadas por distúrbios étnicos e políticos. 

A pedido do governo, uma força internacional liderada pela Austrália foi enviada ao país em 2003 para restaurar a ordem e lá permaneceu por 14 anos, apesar das tentativas de expulsá-las feitas pelo primeiro-ministro, Manasseh Sogavare, em suas três passagens (não consecutivas) pelo poder. Eleito pela quarta vez em 2019, ele logo tomou a decisão que sacudiria o ambiente doméstico e a geopolítica da região.

Meses depois de tomar posse, Sogavare determinou que as Ilhas Salomão deixassem o diminuto grupo de países que ainda reconhecem Taiwan como nação independente, e estabeleceu relações diplomáticas com Pequim. 

A mudança gerou um movimento doméstico de repúdio à possível entrada do país na esfera chinesa e desencadeou tumultos na capital, Honiara. A instabilidade se agravou até culminar, no fim de 2021, em atos de vandalismo no bairro chinês da capital e na tentativa de depor Sogavare.

Onde ficam as Ilhas Salomão

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Fora do país, o tamanho da preocupação pode ser medido pela frequência com que as Ilhas Salomão estenderam o tapete vermelho desde o anúncio do acordo para enviados das principais potências regionais. 

Principal diplomata americano para a Ásia, Kurt Campbell alertou em conversa com Sogavare que os EUA “responderão adequadamente” caso seja estabelecida uma presença militar permanente da China. A Austrália deu recado semelhante, afirmando que seria uma “linha vermelha”.

Além do fator estratégico, a região tem significado histórico para os EUA por ter sido o local de lançamento da ofensiva aliada contra o Japão durante a Segunda Guerra Mundial na decisiva Batalha de Guadalcanal (1942-1943), nome da maior das Ilhas Salomão. 

Naquela época, a China estava em frangalhos, lutando contra a invasão japonesa. Hoje o Japão está do lado dos EUA e compartilha a ansiedade americana com a ascensão da potência chinesa.

'Corrida pelo Pacífico'

Mas as ilhas do Pacífico já estavam no radar geopolítico das potências ocidentais bem antes, lembra Lincy Pendeverana, da Universidade Nacional das Ilhas Salomão. A chamada “corrida pelo Pacífico" marcou uma disputa de espaço iniciada ainda no período colonial, que resultou no "retalhamento" da região em esferas de influência, diz ele. 

Agora, a ascensão de Pequim na região torna-se um desafio à política de “negação estratégica” estabelecida pelo Ocidente, de impedir mudanças nas esferas de influência estabelecidas, explica Pendeverana.

Maior oceano do planeta, com vastos recursos minerais e de pesca, além de importante rota comercial, o Pacífico tornou-se o principal cenário da tensão entre China e EUA na chamada “nova guerra fria”. Com Pequim na mira, os EUA têm reforçado suas alianças militares regionais. 

Na visita de Joe Biden à Ásia iniciada na sexta, sua primeira à região como presidente dos EUA, o esforço americano de fortalecer suas parcerias para conter o avanço da China está no topo da agenda.

As alianças lideradas pelos EUA aumentam o temor da China de se ver cercada por potências hostis, um trauma histórico com cicatrizes deixadas pelo chamado “século de humilhação”, em que o país foi subjugado quando estava em inferioridade naval. 

Para Pequim, o apoio à Rússia contra a expansão da Otan (aliança militar do Ocidente) não é apenas sinal de lealdade à parceria com Moscou — ele reflete a preocupação de que algo semelhante se repita na sua vizinhança. O objetivo real dos EUA é estabelecer "uma versão da Otan no Indo-Pacífico”, protestou em março o chanceler chinês, Wang Yi.

A expansão marítima da China nos últimos anos atende à estratégia que mistura interesses de defesa e econômicos. O país já tem mais navios de guerra que os EUA e, de longe, a maior frota pesqueira do mundo. 

Além disso, conta com uma rede global de quase cem portos operados por firmas chinesas, que vai da cidade israelense de Haifa ao terminal de contêineres de Paranaguá (PR), o segundo maior do Brasil. Como ponto fraco, a China tem só uma base militar no exterior, no Djibouti — contra 800 dos EUA em mais de 70 países.

Acesso estratégico

Diante dessa disparidade, mesmo que não leve à instalação de uma base militar no país o acordo com as Ilhas Salomão é um marco importante para Pequim, pois permite o acesso de navios militares chineses a uma região estratégica, diz Lucio Blanco Pitlo III, pesquisador da Asia-Pacific Pathways to Progress Foundation, centro de estudos sediado em Manila. 

O pacto de defesa gera nervosismo entre as potências tradicionais pela possibilidade de que ele seja repetido em outros países da vizinhança, algo que teria “profundas implicações para a segurança regional”, afirma.

— O interesse de Pequim é expandir o acesso estratégico e assegurar suas rotas de navegação. O comércio chinês com países como o Brasil continua crescendo e isso requer que o país tenha meios para proteger seus interesses. O melhor para isso é ter poderio naval — diz Pitlo.

Assim como ocorre em outros países em desenvolvimento, Pequim conta com seu poder econômico para ganhar influência nas Ilhas Salomão em áreas que vão além da parceria em segurança. Além de ser o maior parceiro comercial do país, a China é responsável por benfeitorias que vão do envio de equipes médicas para a contenção da pandemia a um estádio esportivo em Honiara para os Jogos do Pacífico de 2023.

O sigilo em torno do pacto com a China de fato levanta muitas perguntas, diz Pendeverana. Mas ele acha exagerado projetar nisso a possibilidade de uma base militar chinesa. Primeiro, explica, porque o governo das Ilhas Salomão controla menos de 17% das terras do país. 

Mais importante: uma base militar afastaria os parceiros tradicionais do país, principalmente o maior doador, a Austrália. O que o pacto com a China reflete é a necessidade de países como as Ilhas Salomão de diversificar suas relações para encarar desafios que não foram resolvidos só com os parceiros tradicionais, resume.

— No fim das contas, é preciso caminhar para um envolvimento baseado em colaboração, e não na competição formatada pelo Ocidente — afirma o professor.


Fonte: O GLOBO

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