Hotéis estão, enfim, se adaptando e conquistando hóspedes com transtorno do espectro autista e TDAH

Hotéis estão, enfim, se adaptando e conquistando hóspedes com transtorno do espectro autista e TDAH

Maioria das famílias com crianças neurodivergentes evita viajar, já que mudar rotina pode ser estressante. Mas setor se modernizou para atender a um mercado em expansão

Porto Velho, Rondônia - Em uma viagem com a família aos parques temáticos da Disney, em Orlando, o filho de Nicole Thibault, de dois anos e meio de idade, começou a ter crises— e não no sentido padrão de uma criança pequena. Tudo o que ele adorava antes se tornou de repente profundamente angustiante, desde seus personagens favoritos até comidas familiares que provocavam birras que podiam se estender por mais de 30 minutos.

Algo parecia errado, lembra Nicole sobre o período, que antecedeu em poucas semanas o diagnóstico de autismo do filho. Determinada a continuar mostrando o mundo ao seu filho — sem crises — seu próximo passo foi solicitar dicas de viagem de pais experientes de crianças neurodivergentes. As respostas foram chegando uma após a outra, e todas eram praticamente iguais: "Não vamos a lugar algum. É muito difícil".

Uma década depois, Nicole transformou sua agência de viagens com sede em Nova York, a Magical Storybook Travels, em um negócio próspero que atende especificamente famílias neurodivergentes.

Em sessões de aconselhamento pré-viagem para seus clientes, ela estuda suas rotinas diárias e preferências antes de discutir possíveis destinos. Em seguida, oferece resumos detalhados de cada hotel sugerido, incluindo tours em vídeo, plantas arquitetônicas e um mapa com possíveis riscos de estímulos sensoriais (como fogos de artifício nas proximidades ou aromas fortes no saguão) para criar um planejamento bem específico.

Nos Estados Unidos, aproximadamente 20% da população (66 milhões de pessoas) sofrem de uma forma de neurodivergência. Essas condições, muitas vezes invisíveis, variam desde o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e o transtorno do espectro do autismo (TEA) até a dislexia e a síndrome de Tourette.

Cada diagnóstico — e cada indivíduo — é único, assim como seus gatilhos desestabilizadores. Uma criança que se desenvolve bem em playgrounds pode se mostrar intolerante a lascas de madeira no chão. Outra pode adorar o estímulo das grandes cidades — até que o som áspero de um anúncio do metrô a perturbe.

Alguns podem se alimentar principalmente de nuggets de frango, mas somente se não forem considerados “muito ásperos”. Acrescente uma capacidade reduzida de se comunicar verbalmente em ambientes desconhecidos ou estressantes e é fácil ver como as viagens podem se transformar em uma sucessão de riscos de crises.

As preocupações são tão grandes que, de acordo com uma pesquisa realizada em 2022, 78% das famílias ou indivíduos com autismo desistem totalmente de viajar. Os resultados são do International Board of Credentialing and Continuing Education Standards - Ibcces (Conselho Internacional de Padrões de Credenciamento e Educação Continuada), que treina profissionais da educação, da saúde e de empresas sobre inclusão neurodivergente.

Embora esse número represente uma queda em relação aos 87% de 2018, ainda é um número muito grande, disse a presidente da organização, Meredith Tekin, em um comunicado enviado por e-mail.

Mas as redes hoteleiras estão finalmente percebendo a oportunidade econômica inexplorada de atender a esse público e aprimorando a forma de dar as boas-vindas com sensibilidade. O que está em jogo: dezenas de milhões de hóspedes em potencial que atualmente ficam em casa.

Primeiro a educação, depois as comodidades

O primeiro passo, e a maior parte do que esses hotéis estão fazendo agora, é o treinamento. Certificações como as oferecidas pelo Ibcces ajudam os funcionários a prever necessidades dos seus hóspedes neurodivergentes e a lidar com as interações de forma delicada.

Em vez de parar para olhar a criança de Nicole em um acesso de raiva — ou pior, oferecer conselhos gratuitos —, a equipe treinada está preparada para responder às solicitações de ajuda dos pais e, ao mesmo tempo, incentivar os espectadores a se movimentarem com calma.

''A conversa com os hotéis está mudando. Percebi que as organizações estão deixando de perguntar “por que” isso é necessário para perguntar “como” receber melhor esses hóspedes", escreveu disse Meredith Tekin.

O Atlantis em Dubai oferece um extenso guia sensorial que pode ser baixado para famílias neurodivergentes — Foto: Christopher Pike/Bloomberg

Cerca de 200 empresas de viagens e turismo receberam as designações de Centro de Autismo Certificado ou CAC Avançado do Ibcces desde o início do programa em 2017. Exemplos recentes incluem o Atlantis Dubai, o JW Marriott Desert Springs Resort and Spa e o Legoland Korea Resorts. Outros estão listados no site da Autism Travel, juntamente com hotéis que adotaram certificações semelhantes de outras organizações.

Alguns desses hotéis ofereceram comodidades inteligentes, como cartões de dicas e ferramentas para ajudar os viajantes a superar momentos estressantes. Nos resorts all-inclusive da Karisma no México e na República Dominicana, os hóspedes podem preencher previamente um “passaporte do autismo” com detalhes sobre gatilhos de sensibilidade, preferências alimentares ou estratégias para acalmar para que a equipe de reservas compartilhe com os funcionários do hotel. Em alguns casos, eles também podem compartilhar as solicitações com as companhias aéreas e aeroportos parceiros.

Nos últimos meses, o interesse pela certificação cresceu e passou a incluir esforços em várias propriedades de redes maiores, como Hyatt Hotels Corp, Karisma Hotels & Resorts, Margaritaville Enterprises LLC resorts e Virgin Hotels Group Ltd. No fim de 2023, este último anunciou que estava fazendo uma parceria com a Autism Double-Checked, uma organização de educação e conscientização voltada para o setor de viagens.

Em uma declaração enviada por e-mail, o CEO da Virgin Hotels, James Bermingham, disse que a marca estava comprometida “em promover um espaço acolhedor onde todos os hóspedes, inclusive aqueles com necessidades neurodiversas, possam se sentir verdadeiramente à vontade”.

Tudo isso tem um custo para os hotéis. Embora várias organizações de credenciamento tenham considerado o processo barato, nenhuma delas divulgou os preços.

— O setor ainda não consegue saber se é a coisa certa a fazer, do ponto de vista da inclusão social, ou se é uma oportunidade comercial de se abrir para um público maior. Na realidade, são as duas coisas — disse Alan Day, cofundador e CEO da Autism Double-Checked.

Segmento diversificado com necessidades exclusivas

Rachel Lipson, fundadora da Brooklyn Family Travelers e mãe de dois meninos, um dos quais tem TDAH, descreve o planejamento de viagens como se fosse um rigoroso trabalho em tempo integral. Os detalhes que ela precisa saber sobre hotéis raramente estão disponíveis on-line. Os quartos são interligados? A piscina é aberta para crianças? Há horários de natação somente para adultos a serem considerados? A água é muito fria?

— Passo grande parte do meu tempo fazendo todas essas perguntas — contou Rachel.

Fazer isso é fundamental. As crianças com TDAH geralmente precisam gastar muita energia pela manhã, aprendeu Rachel com o tempo: nadar meia hora pela manhã abriu as portas para que sua família viajasse sem estresse.

Também é fundamental a possibilidade de pular de uma atividade para outra: livrarias, sorveterias, museus e assim por diante. Se uma atividade for um fracasso, diz ela, é fácil passar para a próxima.

A consultora de viagens Nicole Thibault, por sua vez, diz que a dieta de seu filho é muito limitada e que ele é sensível a ruídos. As perguntas que ela faz aos hotéis antes de fazer a reserva são totalmente diferentes das preocupações de Rachel.

É aí que reside o problema para os hotéis: a neurodivergência é um espectro especialmente amplo. Poucas comodidades funcionam em todas as ocasiões.

Espaço para melhorias

Caitlin Meister, diretora-fundadora da consultoria educacional Greer Meister Group, que defende a neurodiversidade, diz que os hotéis têm muitas maneiras de se preparar. Ela diz que crianças como a de Rachel Lipson, que são estimuladas por uma explosão concentrada de atividade sensorial (“buscadores sensoriais”, como ela as chama), são comuns; atender às suas necessidades pode ser tão simples quanto adicionar um trampolim, um balanço ou uma parede de escalada aos clubes infantis ou espaços de recreação.

Da mesma forma, um espaço silencioso reservado pode oferecer grande conforto àqueles com sensibilidade a ruídos.

Criar vídeos de apresentação deve ser fácil, já que muitos hotéis têm diretores de mídia social que criam conteúdo audiovisual. Preencher esses vídeos com detalhes sobre sons, vistas, texturas táteis e cheiros em cada local pode ajudar as famílias a se prepararem para cada aspecto de sua estadia.

Veja o caso de uma cliente de Nicole Thibault, cujo filho autista ficou obcecado em saber como seriam os banheiros nas férias. Um tour pelo quarto que ela encontrou no YouTube foi a solução perfeita, lembra ela. Mostrar a ele como seriam a cama, o banheiro, a pia, o chuveiro e o vaso sanitário — e como eles estavam dispostos — fez uma enorme diferença.

— Isso o acalmou o suficiente para que ele pudesse pensar nas coisas divertidas que iriam fazer — disse ela, em vez de continuar em uma espiral alimentada pelo estresse.

Esse conteúdo pode se estender aos espaços comuns.

— Se você tiver várias piscinas em seu resort, e uma tiver um fundo liso e a outra uma superfície com textura espinhosa, você pode colocar isso em um guia sensorial — diz Caitlin Meister.

O Atlantis Dubai publicou recentemente um desses guias sensoriais que os hóspedes podem baixar antes de sua estadia. Ele oferece classificações numéricas para a intensidade do paladar, do tato, do som e do cheiro em todas as áreas de seus resorts, em uma escala de 1 a 5.

Em última análise, a maneira mais importante de atender aos viajantes neurodivergentes — e seus pais estressados — pode ser uma simples demonstração de empatia.

Em uma viagem recente, lembra Rachel Lipson, seus filhos estavam fazendo barulho no lobby do Andaz Amsterdam. Ela se sentiu mortificada. Mas os funcionários foram rápidos em perceber seu estresse.

— Eles disseram algo como: "Sintam-se em casa; esta é a casa deles também"— lembra ela sobre a interação simples e eficaz. —Fico arrepiada quando penso nisso.


Fonte: O GLOBO

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