Como um defensor do nacionalismo chinês mudou de ideia

Como um defensor do nacionalismo chinês mudou de ideia

Wang Xiaodong, que já foi chamado de porta-estandarte do nacionalismo no país, agora rechaça as críticas de ser muito moderado, e é considerado até mesmo traidor

Porto Velho, RO -
Wang Xiaodong uma vez fez um discurso declarando que “a marcha em direção ao futuro da China é imparável”. Publicou ensaios pedindo à China que aumentasse suas Forças Armadas e coescreveu um livro, intitulado “A China está infeliz”, onde diz que o país deveria ter como objetivo controlar mais terras e moldar a política global. 

“Devemos liderar este mundo”, escreveu. Agora, Wang, de 66 anos, que já foi chamado de porta-estandarte do nacionalismo chinês, tem outro discurso: o nacionalismo foi longe demais.

Durante anos, muitos chineses consideraram Wang radical demais, quando criticava o establishment do país por estar muito apegado às ideias ocidentais e ao comércio global e satisfeito em deixar a China entrar em uma ordem mundial manipulada pelos Estados Unidos.

Então, à medida que a China se tornava mais poderosa, sua mensagem em defesa do nacionalismo — e seu estilo combativo de "apenas-idiotas-discordam-de-mim" — encontrou seguidores. Seu livro se tornou um best-seller. Hoje, bravatas sobre a grandeza do país são comuns nas conversas públicas chinesas, de declarações diplomáticas a bate-papos nas mídias sociais.

Mas, em vez de aproveitar o sucesso, Wang ficou alarmado. Estimulado pela propaganda do governo, o nacionalismo chinês tornou-se cada vez mais volátil e agudo. E assim, Wang se viu na posição inesperada de tentar reprimir o movimento que ele ajudou a promover, quase 35 anos atrás.

Para seus milhões de seguidores nas redes sociais, ele agora opina que a autoestima excessiva põe em perigo a ascensão da China, que ele não chama mais de inevitável. Em postagens em blogs e vídeos impregnados de um comportamento professoral, ele adverte que cortar relações com os Estados Unidos seria autodestrutivo. Também ataca outros influenciadores nacionalistas, acusando-os de alimentar emoções extremas para ganhar seguidores.

Agora, o pioneiro da bravata nacionalista é quem se defende das críticas de ser muito moderado, muito acolhedor com o Ocidente, até mesmo um traidor. Wang, que pessoalmente é mais caloroso do que sua personalidade pública pode sugerir, recebeu a mudança com uma mistura de espanto e diversão.

— Eles esqueceram, nas últimas décadas, que fui chamado de padrinho do nacionalismo. Eu os criei — disse, em uma entrevista em um restaurante perto de sua casa em Pequim. — Mas eu nunca disse a eles para serem tão loucos.


Emblema do PC da China em uma praça na cidade de Yan'an, na província de Shaanxi, Noroeste da China — Foto: Jade Gao / AFP

A divisão pode ser, em parte, geracional. Para os jovens que conheceram apenas uma China ascendente, uma postura estridente em relação ao resto do mundo pode parecer natural. 

Outras figuras públicas mais velhas levantaram preocupações semelhantes a Wang: Yan Xuetong, um professor de relações internacionais muitas vezes agressivo, lamentou este ano que os alunos tenham uma mentalidade excessivamente confiante e fantasiosa sobre a estatura global da China.

Uma história mais humilde da China foi central para a visão de mundo de Wang. Filho de pais instruídos — seu pai era engenheiro, sua mãe, professora — ele tinha 10 anos quando Mao Tsé-Tung lançou a Revolução Cultural. A escola de Wang fechou por dois anos; ele lia velhos livros didáticos sozinho.

Esse período tumultuado incutiu em Wang uma belicosidade duradoura. Sem supervisão, ele e seus amigos frequentemente brigavam com outros jovens.

— Isso me fez sentir muito hipócrita; eu poderia brigar assim, sem qualquer punição. Não foi necessariamente uma grande lição para mim.

Depois que a Revolução Cultural terminou, Wang se matriculou na prestigiosa Universidade de Pequim, em Pequim, para estudar matemática. Mas sua atenção rapidamente fugiu das salas de aula. 

A década de 1980 foi uma época inebriante de novas ideias e revisão nacional, à medida que o país se distanciava do reinado sufocante de Mao. Wang começou a devorar romances estrangeiros, que se tornaram mais acessíveis à medida que a China abria sua economia. Ele praticava inglês ouvindo Voice of America e lendo Reader's Digest.

Em breve, porém, decidiria que o interesse da China no Ocidente tinha ido longe demais.

Seu primeiro grande encontro com o nacionalismo foi em 1988, quando a emissora estatal transmitiu um documentário, River Elegy, que culpava a civilização tradicional chinesa pelo atraso da China e instava o país a aprender com o Japão e o Ocidente. 

Wang, então um jovem professor de economia, ficou indignado. Escreveu um pequeno ensaio criticando a série como autodepreciativa — uma ideia que mais tarde ele chamaria de “racismo reverso”.

Foi um argumento ousado, já que o documentário tinha aprovação estatal. Wang conta que só conseguiu o feito após implorar a um editor do jornal China Youth Daily, que o publicou não na seção de política, mas nas páginas de entretenimento menos lidas.

De qualquer forma, despertou um intenso debate. E fez de Wang uma voz importante do nacionalismo chinês, um movimento que ganhava força à medida que a atmosfera política mais ampla mudava. Após o massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989, o governo freou a abertura política da década de 1980 e tornou-se mais cauteloso em relação ao mundo exterior. Wang estava lá para brigar — e argumentar que o governo não tinha ido longe o suficiente.

Ele produziu livros e ensaios cada vez mais provocadores, argumentando que a China deveria se tornar mais militante para sobreviver à hegemonia americana. Disse que a enorme população do país exigia mais recursos — que podem não ser atingíveis apenas por meios pacíficos.

Em “A China está infeliz”, publicado em 2009, chamou aqueles que diziam que a China não estava pronta para enfrentar os Estados Unidos de “escravos” que “glorificaram a paz”. O livro rapidamente chegou à lista dos mais vendidos, ganhando manchetes internacionais. 

Mas, em um sinal de que a China ainda estava negociando sua relação com o nacionalismo, também foi amplamente criticado. Intelectuais liberais o acusaram de envenenar e militarizar a juventude chinesa. A Xinhua, a agência de notícias estatal, citou críticas de leitores chamando a obra de “pobre e radical”.

A inquietação logo se dissiparia. Como a realização da Olimpíada de Pequim, em 2008, alimentou uma nova confiança nacional, Wang ficou confiante. E também empolgado com a forma como a internet ajudou essas ideias a se espalharem, argumentando que só provava o apelo orgânico do nacionalismo — e de suas próprias ideias. Mas, gradualmente, esse sentimento transformou-se em preocupação.

As tensões entre a China e o Ocidente se intensificaram à medida que os déficits comerciais dispararam e os militares da China começaram a flexionar seus novos músculos em lugares como o Mar do Sul da China

O ânimo aumentou após o surto de coronavírus, e alguns internautas começaram a aplaudir a ideia de romper os laços econômicos com os Estados Unidos, gabando-se de que a China poderia seguir sozinha. Até o intercâmbio cultural se tornou um alvo: os usuários atacaram o vegetarianismo como uma importação estrangeira ou questionaram as pessoas por fazerem cosplay de quimonos.

Wang — um autodeclarado fã da TV americana, especialmente das séries "Westworld" e "Game of Thrones" — começou a temer que muitos chineses tivessem ido longe demais, da autodepreciação à uma suposta invencibilidade. 

Admitiu ter sido excessivamente otimista sobre o ritmo de desenvolvimento da China em seus textos anteriores e disse que o país ainda não era tão poderoso quanto os Estados Unidos.

— Antes, a autoestima do povo chinês era muito baixa e eles achavam que a China não podia fazer nada certo — disse Wang. — Agora eles acham que a China é a número 1 do mundo e pode lutar contra qualquer um, e eu também não posso aceitar isso. A China ainda não é tão forte.

Como já fazia antes, ele postou suas novas conclusões na plataforma Weibo, semelhante ao Twitter, onde tem 2,5 milhões de seguidores. Há alguns meses, depois que alguns usuários das redes sociais previram que a China derrubaria o avião da presidente Nancy Pelosi em direção a Taiwan, Wang disse que muita fanfarronice fazia o país parecer fraco.

Por sua vez, ele é tratado por comentaristas como um arrogante, e parece gostar de revidar, com condescendência. Quando um usuário disse a Wang para ir para os EUA, ele respondeu: “Idiotas como você não apenas carecem de cérebro, mas também de moral”.

Mas há uma ausência notável em sua lista de alvos. Ele quase nunca critica o governo, que provavelmente fez mais do que qualquer um para fomentar o nacionalismo, por meio de sua diplomacia do “lobo guerreiro” e campanhas de desinformação sobre países estrangeiros.


Fonte: O GLOBO

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