Prioridades diferentes afastam Biden de líderes regionais na Cúpula das Américas

Prioridades diferentes afastam Biden de líderes regionais na Cúpula das Américas

Casa Branca teve dificuldades para garantir presença de alguns convidados, como Brasil e Argentina, enquanto ausência de Cuba, Venezuela e Nicarágua provocou críticas

Porto Velho, RO - Pela primeira vez desde que nasceu a iniciativa da Cúpula das Américas, em 1994, no primeiro governo de Bill Clinton, a Casa Branca teve que enviar um emissário, o ex-senador democrata Christopher Dodd, aos países mais importantes do hemisfério para convencer seus chefes de Estado da importância de que participem do encontro, que começa nesta segunda-feira em Los Angeles e vai até sexta-feira.

Jair Bolsonaro finalmente aceitou ir à Califórnia participar dos debates depois de acertar com Dodd um encontro bilateral com o presidente americano, Joe Biden. O argentino Alberto Fernández, que também hesitou por semanas, decidiu ir após receber um convite para uma visita oficial à Casa Branca em julho. O mexicano Andrés Manuel López Obrador, pelo contrário, manteve-se firme em condicionar sua presença ao convite a três países que foram excluídos pelos EUA: Cuba, Venezuela e Nicarágua.

Os malabares do governo americano para tentar evitar uma cúpula esvaziada e, talvez, a mais irrelevante de todos os tempos, refletem o péssimo momento que atravessa a relação entre os Estados Unidos e seus vizinhos latino-americanos. 

Depois da esnobação explícita do então presidente Donald Trump, que cancelou na última hora sua participação na cúpula de 2018, em Lima, a chegada de Biden ao governo não provocou grandes mudanças. Nas palavras do professor de Relações Internacionais Juan Gabriel Tokatlián, vice-reitor da Universidade Torcuato Di Tella, de Buenos Aires, a atual administração americana poderia ser definida como um “trumpismo soft”.

Os Estados Unidos, frisa Tokatlián, não têm uma agenda de propostas para a região, e a região, por sua vez, “quer debater outros temas, que não são os que interessam ao governo americano”.

— Os países latino-americanos querem falar sobre crescimento, combate às desigualdades, mudanças climáticas, e não apenas sobre a guerra na Ucrânia e a influência da China — afirma o especialista, que, junto com acadêmicos da Universidade de Los Andes, na Colômbia, e do Colégio do México, participa de um projeto da Fundação Ford intitulado “As Américas em tempos adversos: em busca de uma agenda”.

Um primeiro documento elaborado pelos envolvidos no projeto, que será apresentado na cúpula, busca esboçar caminhos para superar a crise no relacionamento, com uma perspectiva de médio e longo prazo e uma visão latino-americana do problema. Algumas das propostas são sobre cooperação e ações específicas, em função das necessidades de cada um dos países da região.

— A América Latina tem uma agenda para uma conversa madura e séria com os EUA. Em meio à ausência de propostas construtivas, este documento contém ideias assertivas, que convocam a uma deliberação mais horizontal — diz Tokatlián.

Os temas centrais da cúpula são democracia e sustentabilidade, mas sabe-se que o governo americano pretende aproveitar o palco para falar sobre outros assuntos de seu interesse, como a guerra na Ucrânia. Não está claro que consensos poderão ser alcançados, já que até mesmo entre países da região as posições sobre os temas as serem discutidos são diferentes e difíceis de conciliar.

A fragmentação é uma marca registrada dos tempos atuais na América Latina. Hoje, a região não tem lideranças fortes, embora México e Argentina tenham tentado ocupar um vazio deixado pelo Brasil.

— Não é tempo de excluir ninguém, é tempo de irmandade, de buscar o diálogo, a conciliação, de resolver nossas diferenças de maneira pacífica, deixando dogmas e cargas ideológicas de lado — declarou o presidente mexicano recentemente, tentando justificar sua campanha a favor da participação de dirigentes cubanos, venezuelanos e nicaraguenses no encontro. O grupo foi excluído pelos EUA sob a justificativa do seu autoritarismo, embora Biden tenha recém-anunciado uma visita à Arábia Saudita, que havia prometido isolar por violações dos direitos humanos.

Pressões internas

Representantes do governo americano foram ao Congresso debater a organização da cúpula e ouviram de congressistas como o senador republicano Marco Rubio que “Biden não pode permitir que as ameaças de boicote do México nos obriguem a convidar um ditador cubano a uma cúpula sobre democracia”. Pressões internas — que não podem ser ignoradas, levando em consideração a preocupação da Casa Branca com as eleições legislativas de novembro — completaram um cenário conturbado, que parece antecipar uma cúpula sem brilho.

Na visão do embaixador Thomas Shannon, ex-subsecretário de Estado americano para o Hemisfério Ocidental e ex-embaixador no Brasil, o timing não é o melhor.

— Teríamos que ter feito está cúpula há um ano, com foco na pandemia. Todos teriam ido e teríamos tido uma agenda que unia os países — afirma Shannon.

O embaixador lamenta que, depois de quatro anos de Trump e seu impacto negativo na relação entre os EUA e a América Latina, “todos tenham perdido o foco em matéria de integração”. Hoje, pelo contrário, cada país está mergulhado em seus dramas internos e, sem lideranças regionais, a articulação hemisférica perdeu-se totalmente.

Como se já não bastassem as más notícias recebidas por Biden sobre sua relação com a região nas últimas semanas, o resultado do primeiro turno na eleição presidencial na Colômbia, com o surgimento de um fenômeno como o do populista de direita Rodolfo Hernández, comenta Michael Shifter, ex-presidente do Diálogo Interamericano, “será inevitavelmente uma sombra que vai ofuscar a cúpula”.

— Ficou ainda mais difícil ser otimista sobre democracia e possibilidades de recuperação econômica quando o terceiro maior país da região em termos de população tem duas opções populistas, que representam uma ruptura com o passado — diz Shifter, referindo-se também ao vencedor do primeiro turno, o senador de esquerda Gustavo Petro.

Para o analista, “independentemente de quem ganhe no dia 19 de junho, as relações entre a Colômbia e os EUA vão mudar significativamente e terão de ser redefinidas. As discussões na cúpula não poderão ignorar esta mudança sísmica na política latino-americana, com os partidos tradicionais perdendo força e figuras extremistas e outsiders ganhando espaço”.

Enquanto Biden aguarda o resultado de um encontro que começa com baixas expectativas, os excluídos já se reuniram em Havana, na cúpula da Aliança Bolivariana para os Povos da América (Alba). No encerramento, o presidente cubano, Miguel Díaz-Canel atacou a “incapacidade dos EUA de garantirem espaço plural no hemisfério e de respeitarem as diferenças”.


Fonte: O GLOBO

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