'Por que as crianças?' Na pequena Uvalde, todos perderam alguém em massacre a tiros

'Por que as crianças?' Na pequena Uvalde, todos perderam alguém em massacre a tiros

Cidade texana onde atirador matou 19 crianças em uma escola é uma comunidade unida e pequena, onde a incompreensão só não é maior do que a dor

Xavier López, 10 anos, recebeu uma homenagem por seu desempenho escolar no dia em que foi morto. Ele estava ansioso para compartilhar a notícia com seus três irmãos, mas, segundo seus avós, decidiu ficar na Robb Elementary School após uma cerimônia de final de ano para assistir a um filme e comer pipoca com seus colegas da quarta série.

A sala de aula de Xavier, transformada em um pesadelo após a invasão de um atirador que matou 19 crianças e dois professores na terça-feira, permite ver o caráter unido de Uvalde, uma cidade pecuária mexicano-americana no Sul do Texas, onde as vidas são entrelaçadas por gerações de amizades e casamentos.


Xavier Lopez — Foto: Reprodução

Lá estudavam Xavier e sua namorada do ensino primária, que também foi morta no ataque. Havia as primas Jackie Cazares, que fizeram a Primeira Comunhão há duas semanas, e Annabelle Rodriguez, uma estudante de honra. Estudava também Amerie Jo Garza, uma garotinha sorridente de 10 anos cujo pai disse que “conversava com todo mundo” no recreio e no almoço.


Jackie Cazares, de 10 anos, fotografada durante sua primeira comunhão — Foto: Reprodução

Na quarta-feira, suas mortes uniram Uvalde na angústia e na dor, quando as famílias começaram a lidar com o número do massacre escolar mais mortal desde o tiroteio na Sandy Hook Elementary em Newtown, Connecticut, há 10 anos.

— Por quê? Por que ele? Por que as crianças? — disse Leonard Sandoval, de 54 anos, avô de Xavier, do lado de fora da casa da família, segurando um dos irmãos mais novos de Xavier ao seu lado, enquanto parentes e amigos corriam pela calçada para deixar garrafas de água e frango frito.

Eles se lembraram de Xavier como um ótimo jogador de beisebol e de futebol, que aproveitava cada chance de ajudar seu pai a fazer trabalhos de paisagismo e dançava em vídeos do TikTok com seus irmãos e primos.

Todos em Uvalde, uma cidade de cerca de 15.200 habitantes a cerca de 100 quilômetros da fronteira sul do país, pareciam conhecer uma das crianças que foram mortas a tiros. Ou então tinha estudado no ensino médio com um dos pais ou avós das vítimas. Ou tinha perdido vários membros da família.

— Perdi dois — disse entre soluços George Rodriguez, de 72 anos, enquanto descia do caminhão de entrega de pizza Domino's para cumprimentar um amigo na tarde de quarta-feira. — Meu neto e uma sobrinha. Perdi dois.

— Eu sei, eu sei — respondeu Joe Costilla, amigo de Rodriguez. — Perdemos nosso primo também.

A cena se repetiu várias vezes nos bairros arborizados de casas modestas ao redor da escola primária, onde cerca de 90% dos 500 alunos são hispânicos.

Primos, tias e tios paravam ao redor de picapes. Amigos chorando trocavam longos abraços nos gramados na frente das casas das famílias. As pessoas de luto dirigiam de casa em casa e faziam telefonemas sem parar, reunindo uma lista não oficial dos mortos antes que as autoridades policiais identificassem publicamente as vítimas.

— Se você dirige pela cidade, já pode sentir que ela está diferente — disse Liza Cazares, cujo marido perdeu dois primos de 10 anos no ataque. — Essas foram 21 vidas que não podemos recuperar.


Pessoas se abraçam em frente a escola de Ensino Médio em Uvalde, Texas — Foto: Callaghan O'Hare/The New York Times

Rodriguez disse que participou de uma sessão com um psicólogo no centro cívico na quarta-feira, mas isso lhe ofereceu pouco alívio da dor. Em vez disso, ele disse que perguntou ao seu supervisor na Domino's se poderia pegar um turno na pizzaria.

— Eu simplesmente não conseguia ficar em casa e pensar no que aconteceu o dia todo — disse Rodriguez. — Precisei trabalhar e tentar distrair minha mente.

Ele tirou uma foto de sua carteira mostrando José Flores, de 10 anos – seu “pequeno Josécito” –, a quem Rodriguez disse ter criado como neto. O menino vestia uma camiseta cor-de-rosa que dizia: “Caras durões vestem rosa”. Rodriguez começou a chorar.

Costilla disse que era primo por casamento de Eva Mireles, uma amada professora da Robb Elementary que fazia amizade com crianças e adultos com a mesma facilidade.

Ela adorava correr maratonas e ensinar seus alunos da quarta série, tendo passado os últimos 17 anos como professora, disse Costilla. Ela tinha uma filha de 20 anos e três cachorros.

— Ela era muito próxima de nós — disse Costilla.


Professora Eva Mireles foi uma das duas adultas mortas em massacre no Texas — Foto: Reprodução/Facebook

Eles passaram muitos fins de semana juntos fazendo churrasco em seu quintal, e teriam acendido a churrasqueira novamente neste próximo fim de semana, quando se se celebra o Memorial Day nos Estados Unidos.

— Mas agora ela se foi — disse Costilla.

Até esta semana, Uvalde era talvez mais conhecida por ser a cidade natal do ator Matthew McConaughey e de John Nance Garner, vice-presidente do presidente Franklin Roosevelt.

Em 1970, tornou-se um centro de protestos contra a discriminação depois que estudantes hispânicos do ensino médio fizeram semanas de paralisações.

San Juanita Hernández, 25, uma moradora de quinta geração, disse que seus professores frequentemente faziam referência à história de Uvalde e a nomes famosos, enquanto estimulavam ela e outros alunos a fazerem grandes coisas.

— Qualquer professor de sala de aula, treinador de futebol, diria: “Qual de vocês vai nos trazer fama e nos colocar no mapa?” — disse Hernández.

Apesar da proximidade da fronteira e da presença de um posto de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA em Uvalde, moradores e autoridades municipais disseram que a maioria das pessoas nasceu na área e tem laços profundos com a história da pecuária da região.

No bairro ao redor da Robb Elementary, mais de 40% dos moradores moram na mesma casa há pelo menos 30 anos, de acordo com dados do Censo.

A perda para todos em Uvalde levou as pessoas para uma missa às 10h na quarta-feira na Igreja Católica do Sagrado Coração. Enquanto se dirigiam para o prédio, Rebecca e Luis Manuel Acosta disseram que o tiroteio teve um impacto devastador em uma comunidade onde parecia não haver mais do que alguns graus de separação entre as famílias.

— Sinto tanto medo — disse Acosta, de 71 anos. — Sinto muito por essas mães.

As conexões estreitas se estenderam ao atirador de 18 anos, que as autoridades dizem ter realizado o massacre antes de ser morto a tiros por um agente da Patrulha da Fronteira. Ronnie Garza, um comissário do condado, disse que conhecia a avó do suspeito, que foi ferida antes do tiroteio na escola. Ele disse que um de seus netos também conhecia o suspeito, que frequentava a Uvalde High School.

— Somos uma comunidade de fé, operários, trabalhadores agrícolas — disse Garza.

Como em grande parte do Texas, a posse de armas está profundamente impregnada na cultura e no governo de Uvalde. O condado de Uvalde, que inclui a cidade, elegeu democratas conservadores, mas também votou duas vezes no ex-presidente Donald Trump.

A Câmara Municipal aprovou uma medida em outubro permitindo que os trabalhadores da cidade possam levar uma arma registrada para o trabalho, e o Departamento de Polícia de Uvalde distribuiu travas gratuitas para tentar evitar disparos acidentais, de acordo com o The Uvalde Leader-News.

Alguns moradores disseram que era inapropriado debater as políticas de armas do país quando as famílias ainda esperavam para enterrar seus filhos. Outros disseram que ficaram furiosos com o massacre de 19 crianças após outros recentes tiroteios em massa no Texas, inclusive em uma igreja em Sutherland Springs, em 2017, e em uma escola em Santa Fé, em 2018.

— Tudo o que todos querem dizer é que vamos orar por você e sentimos muito por sua perda, mas isso não é mais suficiente — disse Rogelio M. Muñoz, que serviu na Câmara Municipal por 14 anos. — Algo precisa mudar. Mas o que me enfurece é que eu sei que nada vai acontecer. Ninguém vai fazer nada a este respeito.

Na escura sala de estar de Alfred Garza III, um grupo de amigos do Ensino Médio estavam sentados conversando e trocando memórias, enquanto o Garza lamentava a perda de sua filha, Amerie Jo.

Amerie Jo Garza, de 10 anos, foi uma das vítimas de ataque a uma escola nos EUA. Na foto, ela aparece com seu pai, Angel Garza — Foto: Facebook / Reprodução

Garza, que trabalha em uma concessionária de carros usados ​​em Uvalde, disse que estava no intervalo do almoço na terça-feira quando a mãe de Amerie Jo lhe disse para ir buscar a filha na escola, que havia uma emergência.

— Eu fui direto para lá e encontrei uma cena de caos — lembrou ele, acrescentando que esperou horas antes de saber que Amerie Jo havia morrido.

Quando ele chegou em casa, ele começou a ver as fotos dela.

— Foi quando eu consegui começar a liberar meus sentimentos — disse ele. — Comecei a chorar e a lamentar.


Fonte: O GLOBO

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