'Na fronteira com o México fomos penalizados por salvar pessoas que se afogavam', diz presidente de MSF

'Na fronteira com o México fomos penalizados por salvar pessoas que se afogavam', diz presidente de MSF

Em entrevista ao GLOBO, Christos Christou aponta riscos da desinformação em torno da Covid e afirma que guerra na Ucrânia levou outras crises, como a do Afeganistão, a serem negligenciadas

Porto Velho, RO - A desinformação em torno da pandemia da Covid-19 e de guerras como a da Ucrânia afetou a maneira com as organizações humanitárias são vistas, afirma o presidente da organização humanitária internacional Médicos sem Fronteiras (MSF): de “salvadores do planeta, os trabalhadores de MSF muitas vezes passaram a ser criminalizados por fazer seu trabalho. 

Ao GLOBO, o médico grego Christos Christou fala sobre a preocupação com grupos excluídos, como os povos indígenas no Brasil e refugiados, sobre a desigualdade em relação às vacinas e da preparação para a próxima pandemia.

Nos últimos dois anos, a pandemia foi o maior problema de saúde no mundo. Como ela mudou a atuação de Médicos Sem Fronteiras (MSF) no mundo? Quais foram os principais desafios, no início da pandemia e agora?

No começo, era novo para todos. Nós não sabíamos contra o que estávamos lutando. O que foi particularmente novo para MSF, nesses 50 anos de surtos, é que nós precisávamos trabalhar todos juntos. 

Primeiro em relação à distribuição de equipamentos de proteção, depois com os diagnósticos, e por último em relação às vacinas. Tínhamos que trabalhar em solidariedade, com segurança, mas num plano global. Aquele problema global precisava de soluções globais. Foi difícil.

Foi também quando nos encontramos, como MSF, em lugares onde nunca esperamos estar, como no centro das grandes cidades da Europa, dos Estados Unidos, ou do Brasil, mas também em lugares onde as pessoas foram deixadas para trás, intencionalmente ou não. 

Especificamente entre povos indígenas, pessoas sem teto, migrantes. Eles foram excluídos dos serviços de saúde, e por isso tivemos que desenvolver projetos em Bruxelas, Madri, Nova York, e claro, Brasil, e isso nos ensinou muito.

E agora estamos numa posição onde começamos a compartilhar de algum otimismo sobre o que vai acontecer a seguir. Algumas pessoas falam que começamos a ver a luz no fim deste túnel. Não que seja o fim da pandemia, mas vejo que a própria MSF e toda a comunidade médica do mundo está buscando como se preparar melhor para a próxima pandemia e como responder melhor a ela. 

Todas as lições que absorvemos dessa pandemia deve nos ajudar. Agora temos que trabalhar todos juntos, com um bom sistema de vigilância, que possa monitorar o que está acontecendo e nos ajude a responder de maneira mais imediata. 

Isso significa que não devemos excluir pessoas, porque assim não fornecemos solução para o problema. E todas as desigualdades de recursos e vacinas nos dias de hoje voltarão para nós.

Vou tentar reverter essa questão. Olhando a pandemia de maneira global, identificamos focos de exclusão em todo o planeta. Ou seja, não se trata de regiões, mas de populações mais afetadas. Povos indígenas aqui no Brasil, que é uma das nossas maiores preocupações. 

Assim, como a maioria dos migrantes em Bangladesh, em Cox's Bazar, ou pessoas fugindo das guerras na Síria ou tentando atravessar para chegar à Europa. E é, claro, todos os conflitos prolongados no mundo, como no Iêmen, Iraque ou Afeganistão nos deixam muito preocupados não com essa, mas com a próxima pandemia.

E claro, podemos dizer que a África foi não apenas muito infectada, mas também muito afetada pela pandemia. Ainda queremos entender melhor como podemos reparar os efeitos em seus sistemas e serviços de saúde, que já eram muito frágeis. 

Os poucos locais que eram usados para atender as necessidades da população, agora são destinados apenas para a Covid, o que excluiu o acesso de muitas pessoas. Por exemplo, pacientes com HIV ou tuberculose, ou até serviços de maternidade ficaram fechados para atender a pandemia.

A pandemia também deixou em evidência as desigualdades em relação à produção e distribuição das vacinas no mundo. Como podemos mudar esse panorama?

Vimos que a pandemia e os problemas relacionados por ela são tratados pela comunidade internacional por uma espécie de "solidariedade moderna", que demonstra pena em relação às pessoas que foram deixadas para o final da fila, mas que não os trata como parceiros. 

Então, o que nos perguntamos e temos feito sistematicamente nos dois últimos anos é defender a igualdade das vacinas. O que pedimos é que transformemos esse modelo de caridade em um modelo de parceria. 

Em outras palavras, alertamos em todos os diferentes contextos e lugares deste mundo para que se tornem parceiros para resolver o problema juntos, para ajudar que todos tenham sua própria capacidade de realizar pesquisas, desenvolver novos produtos relacionados à Covid, para que todos sejam capazes de criar sua própria solução.

Em vez disso, o que temos hoje é um sistema que ainda é guiado, na verdade controlado, pelo livre mercado, pelo mercado das grandes indústrias farmacêuticas. E todos esses produtos não são bens comuns, mas são usados por nossos líderes para obter lucro.

Mesmo com as vacinas agora sendo distribuídas de maneira mais ampla ainda há desigualdade, por quê?

Agora o problema não é ter ou não vacinas suficientes, mas a vacinação em si. Há várias razões que explicam isso. Muitas delas têm a ver com a capacidade dos sistemas de saúde em alguns locais; outras estão relacionadas à resistência da população. Há tanta desinformação, que criam tanta confusão na população, que muitos ainda hesitam em se vacinar.

Precisamos de boa logística, mas também precisamos resolver as questões relacionadas à responsabilidade dessas vacinas, e curiosamente as grandes empresas não querem assumir essa responsabilidade. Eles ainda querem que os países se responsabilizem e isso é uma loucura.

Agora eles têm informações suficientes para entender quais são efeitos colaterais e fazer o que tem que ser feito para informar a população, mas eles não fazem isso: insistem que deve ser responsabilidade dos países ou de quem quer que assuma as vacinas. Hoje nossa principal preocupação não é o abastecimento em si, mas como as vacinas chegam aos braços da população.

Nesse sentido, o senhor acha que a pandemia aumentou o problema de desinformação no mundo?

Acredito que sim, e tenho falado com pessoas que tiveram essa experiência em primeira mão. Estive aqui [no Brasil] no ano passado quando havia uma enorme crise humanitária em relação à Covid, quando populações foram excluídas, os serviços de saúde pública foram abandonados, e as pessoas ficaram confusas. 

Nessa época tivemos tantas mensagens contraditórias, que no fim as pessoas não sabiam em quem confiar. Conversei com vários de nossos colegas que trabalham com saúde aqui e uma mensagem que recebi deles, claramente, foi: 'Como podemos fazer todos acreditarem na ciência, começando pelo próprio governo federal?'.

Havia muita informação truncada, mas também muita desinformação, e isso é um desafio para todos nós. Agora vemos essa desinformação também em outros contextos, como na Guerra na Ucrânia. Uma das maiores vítimas, claro, depois das pessoas que vivem ali, é a verdade.

O senhor falou sobre como a atividade de ajuda humanitária tem sido penalizada, pode dar mais exemplos?

Nos últimos anos temos sido vítimas de como o contraterrorismo está de alguma forma anulando o direito internacional humanitário, as convenções, as ferramentas que temos para negociar acesso. Nos dias de hoje, temos cenários onde a ajuda humanitária é criminalizada. 

Em outras palavras, enquanto tentamos chegar às populações civis que são excluídas por causa de um conflito, em locais controlados por grupos armados não ligados ao governo, somos vistos pelas autoridades como auxiliares a esses grupos terroristas. 

Isso torna nosso trabalho extremamente difícil. Estamos sempre tentando provar a todos que somos neutros e imparciais, guiados pelo princípio da humanidade. Pessoalmente, trabalhei em uma sede em Camarões, em uma zona onde há um conflito entre os falantes do idioma inglês e os falantes do idioma francês, e vi como é difícil tratar pessoas que são vistas como terroristas. 

Em vários lugares do mundo hoje, a ajuda humanitária é penalizada e criminalizada. Ouvimos dos governos: 'Você não pode ir ali, é um território ocupado por grupos armados, estão lutando contra eles e não queremos você ali'.

Acontece o mesmo na Ucrânia hoje. O conflito é instrumentalizado pelos dois lados. E como você se mantém neutro? Na fronteira com o México fomos penalizados por salvar pessoas que estavam se afogando. 

Não apenas nós, outras organizações humanitárias e até mesmo pessoas comuns que só queriam dar a mão para alguém que estava sendo levado pelo rio. No fim das contas tem a ver com o quanto ainda respeitam os trabalhadores humanitários e o quanto confiam neles para fazer seu trabalho. 

Não estamos mais na época em que éramos vistos como salvadores do planeta. O mundo mudou.

Em relação à Ucrânia, como MSF vem atuando tanto em relação aos que permanecem no país, necessitando cuidados médicos, quanto em relação aos que estão fugindo?

Estamos presentes no país de 2014, quando os primeiros conflitos começaram. Desde então, tivemos diferentes projetos, com foco nos pacientes excluídos do sistema de saúde, em especial com HIV ou tuberculose. Quando tudo começou, fomos pegos de surpresa, mas tivemos uma resposta muito rápida. Só que tivemos que mudar nossas equipes, e focar em serviços de emergência. 

Nunca estivemos na zona de guerra, porque não temos acesso seguro a essas zonas. Em vez disso, estamos em todos os lugares onde as pessoas estão presas, em estações de metrô, porões, bunkers. Agora também estamos tentando oferecer um suporte que eles nunca tiveram. 

A Ucrânia é um país que tem um sistema de saúde avançado, e tem alta capacidade em termos médicos, com profissionais experientes, mas não tão familiarizados com trauma. Por isso estamos organizando esse tipo de treinamento, para tratar esse tipo de vítimas [de guerra].

Agora estamos atendendo também às necessidades dos mais vulneráveis, dos mais idosos, que decidiram ficar ou nunca tiveram a oportunidade de sair dessas zonas. Atendendo problemas crônicos, como hipertensão e diabetes, por exemplo. 

O que vem pela frente? Ninguém sabe. Ainda estamos negociando acesso à linha de frente, às zonas de guerra, para tentar contribuir mais ajudando ali. Mas tudo que atendemos na Ucrânia é apenas uma gota de todas as maciças operações que temos no resto do mundo. Não ouso comparar mas vemos que a guerra na Ucrânia afeta diretamente outras zonas de conflito.

Como?

De várias maneiras. Vemos por exemplo que as grandes crises humanitárias, como no Afeganistão, estão sendo negligenciadas. E não apenas pela opinião pública, mas por aqueles países doadores, que cortaram fundos. 

O sistema de saúde na região está muito deteriorado. Além disso, a crise na Ucrânia, e a consequente crise de combustível causada por ela, ou de distribuição de comida, também afeta locais que já sofrem de desnutrição.

Também vemos novos surtos. Por exemplo, a Ásia é o maior produtor de vacinas da febre amarela e não sabemos o que vai acontecer agora. São apenas alguns dos exemplos. Mas o mais importante é que estamos entusiasmados com a onda de solidariedade em relação aos refugiados ucranianos, e adoraria ver a mesma atitude a todos as outras pessoas que fogem de outros países e outras guerras e conflitos do mundo. Gostaria que a União Europeia, por exemplo, não diferenciasse pessoas fugindo de outras zonas inseguras.

Agora falando sobre a América Latina, quais são os maiores desafios?

Nesse momento, tentamos entender as necessidades daqueles que são excluídos, tanto dos sistemas de saúde ou mesmo como alvos. Começando pela saúde dos povos indígenas, aqui no Brasil, um dos nossos principais desafios. Ainda tentamos estar atentos às necessidades emergenciais desses grupos, o que nem sempre é fácil. 

Não porque não temos acesso a eles, na verdade temos certo apoio e aceitação por parte dos povos indígenas, que inclusive pedem a MSF para desempenhar um papel mais importante. Mas somos uma organização médica humanitária que tem suas próprias limitações. Entendemos que nesse momento, o problema da saúde dos povos indígenas vai além das necessidades médicas em si, e temos que estar ao lado deles em todos os sentidos.

No contexto mais amplo da América Latina, um grupo que mais precisa de nosso suporte são aqueles que estão se movendo pela região, os migrantes, tanto no eixo Sul-Sul, como os que deixam a Venezuela, mas também àqueles que tentam chegar ao Norte. Estamos chocados com as histórias que tivemos de pacientes nas fronteiras mexicanas.

Temos exemplos em outras partes do mundo de como os governos os tratam como um problema, de como eles priorizam a segurança de seu povo ao invés de olhar para as necessidades dos migrantes. De como priorizam essa segurança no lugar da humanidade. 

Também estamos presentes há muito tempo no Haiti, e sabemos o que significa para essas pessoas fugir da violência que acontece lá, onde há uma situação ainda mais caótica nos dias de hoje. Temos que negociar com diferentes grupos armados, em cada um dos postos de controle, para estar onde eles precisam de nós.


Fonte: O GLOBO

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