Política de 'cancelamento' da Rússia por países do Ocidente prejudica cidadãos comuns

Política de 'cancelamento' da Rússia por países do Ocidente prejudica cidadãos comuns

Bolsas no exterior são canceladas, e até russos que já moram fora enfrentam boicote

Porto Velho, RO
— Em 31 de janeiro de 1990, dois anos antes do fim da União Soviética, as imagens da multidão que esperava para entrar na primeira loja do McDonald’s em Moscou percorreram o mundo. 

Agora, a marca foi também uma das primeiras das mais de 250 empresas estrangeiras a se afastarem do país, num momento em que as sanções ocidentais e medidas de cancelamento de tudo o que é russo determinam uma nova era de ostracismo para a Rússia.

Artistas, atletas e celebridades foram desligados ou afastados das suas atividades em países ocidentais, mas o cancelamento da Rússia tornou-se, por tabela, o dos cidadãos comuns do país. Bolsas de estudo foram suspensas pelo governo da região de Flandres, na Bélgica, onde, como na Eslovênia e na Eslováquia, pedidos de visto feitos por russos passaram a ser dificultados ou negados. 

Com voos para os países europeus suspensos, por causa do fechamento do espaço aéreo para as companhias russas de aviação, é difícil viajar para a região. Apesar das dificuldades, milhares de russos já deixaram o país, chegando à Turquia ou a ex-repúblicas soviéticas como Armênia, Geórgia, Uzbequistão, Cazaquistão e Quirguistão.

— Foi muito complicado sair. Não tem voo. Para muitos lugares é preciso visto. Dei sorte porque eu já tinha o meu. Agora, vou pensar o que fazer da minha vida. Não dava para ficar — disse ao GLOBO um artista russo que acaba de desembarcar em Londres.

Como os dissidentes da Guerra Fria, há professores universitários russos enviando currículos a seus pares e amigos mundo afora. 

Entre acadêmicos brasileiros, circula a seguinte mensagem: “Caros colegas e amigos, procuro uma oportunidade de estágio fora da Rússia. Mesmo sem bolsa, mas com dormitório. Peço a sua ajuda! O perigo é real”.

Na capital britânica, onde mora há alguns anos, uma professora universitária, que pediu anonimato, contou que as obras que fazia em sua cozinha foram interrompidas. Os pedreiros poloneses disseram não trabalhar para russos. 

Tudo isso mexe com o imaginário russo. Já há quem diga que o cancelamento pode afastá-los ainda mais do Ocidente.

— Sou contra a guerra. Agora, se esses países não querem saber de nós, decidiram nos cortar, o que tenho a dizer é que vamos sobreviver. 

Somos sobreviventes! Uma amiga vai plantar batatas e legumes na dacha [a casa de campo que os russos ganhavam do governo na era soviética] e vamos nos alimentar — disse Svetlana, professora de literatura em Moscou. 

— Tive Covid duas vezes em seis meses. Somos russos e vamos nos unir. Já passamos por outras guerras. Estou cansada de sentir medo.

Bogdan Zawadski, professor de psicologia pós-traumática da Universidade de Varsóvia, vê uma crescente insatisfação da população em relação a Putin. Mas admite que ela pode se voltar contra o Ocidente.

— Os russos são capazes de grandes sacrifícios pela Mãe Rússia, especialmente com a ajuda da narrativa da propaganda da Grande Guerra Patriótica (como chamam a Segunda Guerra Mundial). 

Paradoxalmente, a deterioração do padrão de vida da população pode despertar o sentimento bélico, a aversão ao Ocidente e aumentar o apoio ao governo — afirmou ao GLOBO.

Em artigo recente, Mark Galeotti, especialista do University College de Londres, escreveu que é preciso “bombardear” os russos com amor e tê-los próximos. 

Para Archie Brown, professor emérito de Oxford, e um dos maiores especialistas em União Soviética do Ocidente, a Rússia precisa ser enfrentada agora, mas, cedo ou tarde, terá que ser parte do novo diálogo sobre segurança.

— A alternativa é viver sob o constante risco de erros de cálculo, que, em tempos de alta tensão, podem levar a uma catástrofe global — disse.

O isolamento de artistas que não contestam a visão do Kremlin ou que receberam financiamento do Estado faz lembrar, segundo especialistas, medidas similares às adotadas durante o apartheid na África do Sul, ou o movimento que defende o boicote a Israel em solidariedade aos palestinos. 

Para Jane Duncan, da Universidade de Johanesburgo, isolamentos cultural e esportivo podem ser eficazes pelo impacto psicológico. O boicote, segundo ela, pode intensificar as divergências dentro da Rússia sobre a invasão.

— Durante vários séculos, a Rússia se orgulhou de suas conquistas intelectuais, artísticas e esportivas, que se tornaram parte de sua identidade e projeção de soft power no mundo — disse à agência AFP a especialista em boicotes culturais como agentes de mudanças políticas.

Ao GLOBO, o professor Vladimir Gel’man, do Centro Finlandês para Estudos Russos e do Leste Europeu da Universidade de Helsinque, afirma que o cancelamento não se dá para afetar os cidadãos russos em si, mas para romper relações com o país que lançou a guerra.

— Não foi o governo americano que mandou a Apple parar de fornecer iPhones aos russos. Os cidadãos americanos não querem permitir que uma empresa dos Estados Unidos mantenha negócios com a Rússia. Os consumidores russos vão sofrer. Mas acho que a raiva deles não é nada comparada ao sofrimento de muitos ucranianos — afirmou o acadêmico.


Fonte: O GLOBO

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