'Inferno', Mariupol é estratégica para a Rússia, que intensifica cerco após Ucrânia recusar rendição

'Inferno', Mariupol é estratégica para a Rússia, que intensifica cerco após Ucrânia recusar rendição

Resistência desesperada de forças ucranianas trava toda a campanha russa, que pode se ver incapaz de alcançar seus principais objetivos políticos na guerra

Porto Velho, RO -
Veículos blindados e tanques russos com a letra Z recém-pintada onde antes estava um O, agora desbotado, chegaram nos últimos dias a Mariupol. 

Desde o início da invasão da Ucrânia, sabe-se que os equipamentos marcados com Z vão para regiões a Leste do país, incluindo a cidade portuária cercada, enquanto os que levam a letra O se destinam a uma frente perto de Kiev. 

Esses veículos estavam em Chernihiv, a 150 quilômetros da capital, e foram deslocados para ajudar a Rússia a vencer a mais penosa batalha da guerra até aqui.

Sitiada há mais de três semanas, com centenas de edifícios destruídos, todas as suas lojas saqueadas e a população sem água, luz e gás, Mariupol aguarda por dias ainda piores. 

No domingo à noite, forças ucranianas negaram um ultimato da Rússia para deporem armas e se entregarem até as 5h da manhã de segunda. Como resultado, o Exército russo deve intensificar a sua ofensiva, e o uso de armas e métodos devastadores está nos planos.

Moscou percebe em Mariupol um ponto-chave de sua estratégia para submeter o governo ucraniano a suas exigências políticas por meio da força. 

Se a cidade cair, a Rússia vai controlar o Mar de Azov e terá uma posição privilegiada para investir contra Odessa, a oeste, e então dominar todo o acesso da Ucrânia ao Mar Negro. Um corredor de acesso terrestre também poderá ser formado entre a região de Donbass, no Leste da Ucrânia, onde atuam separatistas pró-Moscou, e a Península da Crimeia, anexada em 2014.

A situação na Ucrânia, 21/3


Ademais, o comando militar russo espera que a conquista de Mariupol leve a um fenômeno que estudiosos da guerra comparam a um efeito-dominó: o cumprimento de um objetivo que libera forças capazes de ajudar no êxito de outros.

“Mariupol é importante porque as forças comprometidas com a sua captura não podem ser usadas em outro lugar. 

Se ou quando a Rússia a tomar, essas forças podem ser utilizadas para ajudar a cercar as forças ucranianas ao norte ao redor de Donbass”, disse na sexta-feira Rob Lee, pesquisador do King’s College, em Londres, e do Foreign Policy Research Institute, na Filadélfia. “Quanto mais tempo Mariupol resistir, pior será para a Rússia.”

A tática russa para dominar a cidade consiste no emprego de uma força cada vez mais brutal para alcançar a ruína gradual das forças de defesa da Ucrânia, cuja situação se deteriora a cada dia. Além de remédios, combustível e munição, falta comida. Em breve, a água pode também se tornar rara, à medida que toda a neve do inverno, a reserva utilizada até aqui, derreta com a chegada da primavera.

Há, além disso, uma desigualdade grande entre as forças. 

Segundo autoridades ucranianas, até 14 mil soldados russos, auxiliados por militares chechenos e por membros da autoproclamada República Popular de Donetsk, participam do cerco, enquanto a defesa ucraniana é liderada por cerca de 3 mil soldados do Batalhão Azov — uma milícia neonazista que, após ser criada como organização paramilitar, foi incorporado à Guarda Nacional Ucraniana —, fuzileiros navais e membros da Guarda Nacional, auxiliados por civis.

Na segunda-feira, um lançador de mísseis termobáricos TOS-1A — uma arma que dispara até 30 projéteis capazes de desintegrar corpos de uma vez e é conhecida por provocar danos indiscriminados — foi pela primeira vez filmado em ação na guerra, em uma área que analistas de inteligência dizem ser perto da cidade. Desde fevereiro, ele já tinha sido fotografado e a Rússia já reconhecera o seu uso.
Svyatoslav Palamar, capitão do Batalhão Azov, disse à CNN nesta segunda-feira que “as bombas agora caem a cada dez minutos sobre Mariupol”. 
Capturado intacto nos primeiros dias da guerra, o porto de Berdyansk, 85 quilômetros a oeste da cidade, transformou-se em um centro de distribuição logística das forças russas. O canal estatal russo RT publicou um vídeo de blindados sendo descarregados lá na segunda-feira.


No domingo, a Rússia disse ainda haver 130 mil civis na cidade de 440 mil habitantes, mas a conta diverge muito dos cálculos ucranianos. 

Segundo autoridades ucranianas, 100 mil pessoas deixaram a cidade antes do cerco, e outras 40 mil escaparam por carros na semana passada, em corredores humanitários. De acordo com esta conta, até 300 mil pessoas ainda podem estar na área urbana.

A exposição dos acontecimentos em Mariupol também se torna mais difícil: a última equipe de jornalistas internacionais com atividade conhecida na cidade, da agência Associated Press, escapou na última terça-feira por um corredor humanitário. 

Em um relato da fuga publicado ontem, o repórter Mstylav Chernov disse que “em nenhum lugar Mariupol estava a salvo, e não havia nenhum alívio. Você podia morrer a qualquer momento (...) Nós éramos os últimos jornalistas em Mariupol. Agora não há nenhum”.

Defesa sem horizonte

A tática de defesa ucraniana, enquanto isso, consiste em defender quadra a quadra, bloco a bloco, com a intenção de reter ao máximo as forças russas. Segundo Rob Lee, “a Rússia está avançando, mas devagar, a um preço alto”. 

É uma batalha sem outro horizonte além da resistência: na sexta-feira, o conselheiro presidencial ucraniano Oleksiy Arestovych reconheceu que outras tropas não têm como tentar quebrar o cerco, porque para alcançar a cidade necessitam atravessar ao menos 120 quilômetros de terreno aberto.

Nesta segunda-feira, o líder da autoproclamada República Popular de Donetsk, Denis Pushilin, disse “não estar tão otimista de que em dois, três ou mesmo uma semana” o lado russo vá tomar Mariupol.

— Infelizmente, não, a cidade é grande — disse Pushilin, citado pela agência russa Interfax.

Ele acrescentou que o principal ponto da resistência está nos arredores da usina siderúrgica de Azovstal, uma das maiores da Europa. 

No domingo, a instalação sofreu bombardeios russos, e teve sua capacidade industrial destruída, segundo relatos. Ainda assim, permanece como abrigo para os defensores ucranianos, que controlam cerca de metade de sua área e conseguem manter as forças russas longe do centro.

— Sua principal fortificação é a usina de Azovstal. Levando em conta que o território de Azovstal sozinho tem cerca de 11 quilômetros quadrados, entendemos perfeitamente que infelizmente não podemos dizer que tudo terminará amanhã ou depois — disse o líder separatista.

A situação em Mariupol

A catástrofe humanitária é descomunal, e não há estimativas confiáveis de vítimas, em meio a relatos em redes sociais de valas coletivas e corpos abandonados nas ruas. 

Autoridades ucranianas estimam que 80% da infraestrutura de Mariupol estão danificados ou destruídos, e 40% não podem ser reparados. Uma análise por imagens de satélite feita por investigadores do New York Times contabilizou 391 prédios residenciais destruídos ou danificados.

O diplomata grego Manolos Androulakis, o último diplomata da UE a deixar Mariupol, na última terça-feira, a comparou a outras cidades arrasadas durante guerras modernas:

— O que eu vi, espero que ninguém veja. Mariupol se tornará parte de uma lista de cidades que foram completamente destruídas pela guerra; eu não preciso nomeá-las: Guernica, Coventry, Aleppo, Grozny, Leningrado — disse ele, em uma lista que poderia incluir ainda Sarajevo, na Bósnia (1992-1996), e Mossul, no Iraque (2016-2017), entre muitas outras.

Resultado estratégico

Analistas militares dizem que, caso Mariupol seja enfim conquistada, é incerto se a Rússia liberará forças o bastante para mudar drasticamente o resultado da guerra. 

De acordo com o Instituto de Estudos da Guerra, um centro de estudos de Washington, em um texto de sábado, “se os russos tivessem tomado Mariupol rapidamente ou com relativamente poucas perdas, eles provavelmente teriam sido capazes de mover poder de combate suficiente para o oeste”. 

A luta quadra a quadra, contudo, “está custando tempo, iniciativa e poder de combate aos militares russos”, e eles “podem não ser fortes o suficiente para mudar drasticamente o curso da campanha”.

O ministro da Defesa da Ucrânia, Oleksiy Reznikov, demonstrou sua gratidão aos soldados em Mariupol em um comentário publicado no domigo. 

Os soldados “desempenharam um grande papel na destruição dos planos do inimigo e no reforço da nossa defesa”, escreveu. “Hoje Mariupol está salvando Kiev, Dnipro e Odessa. Todos devem entender isso.”

De acordo com vários especialistas, o cerco prolongado a Mariupol sugere que a Rússia vai desistir do objetivo de instaurar um governo fantoche em Kiev, preferindo no lugar disso tomar as partes das províncias orientais de Donetsk e Luhansk, na região de Donbass, que ainda não estão sob seu controle, e garantir um corredor terrestre para a Crimeia.

“Acho que Moscou busca algo que possa usar para declarar uma vitória. Tomar o Donbass e ter influência para obter concessões de Kiev é provavelmente o que eles estão procurando neste momento ”, disse Michael Kofman, especialista em militares russos no CNA, outro centro de estudos de Washington.

Se Kofman estiver correto e a ofensiva russa for bem-sucedida, Mariupol ficará sob comando russo. O custo para isso terá sido o sacrifício de milhares de seus cidadãos, a destruição de centenas de edificações e o apagamento de grande parte de sua história até aqui. 

Em textos publicados no Facebook, Nadezhda Sukhorukova, uma moradora da cidade, tem descrito o que vive:

“Meus amados moradores de Mariupol ainda vivem em porões, no frio, sem luz e água. Suas casas são abaladas por explosões, suas vidas são piores que o inferno, eles perdem entes queridos e não podem enterrá-los”, disse ela no sábado.

“Tenho certeza que vou morrer em breve. É uma questão de dias. Nesta cidade, todos estão constantemente esperando a morte. Eu só queria que não fosse muito assustador”.


Fonte: O GLOBO

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