Na ginga da capoeira, ucranianos em Kiev encontram terapia antiestresse contra as sirenes da guerra

Na ginga da capoeira, ucranianos em Kiev encontram terapia antiestresse contra as sirenes da guerra

Nas cerca de dez escolas da luta brasileira na capital ucraniana, alunos encontram alívio do conflito e o ‘estilo carioca de viver’

Porto Velho, Rondônia - O pequeno Ruslan Stoiko mal tinha aprendido a andar quando, aos 2 anos, foi apresentado a um estranho balé de braços e pernas vindo do outro lado do oceano. Hoje, aos 9, ele e o pai, o produtor rural Roman, de 38, são alunos dedicados de aulas de capoeira em uma das pelo menos dez escolas que existem em Kiev, capital da Ucrânia.

A arte marcial brasileira, que mistura dança e música, cativa ucranianos e ucranianas de todas as idades e, para os que já faziam aula antes do início da guerra com a Rússia, em 24 de fevereiro de 2022, a capoeira se transformou em terapia antiestresse.

— Nas duas horas em que estou fazendo a aula, esqueço de tudo e coloco a mente em branco — diz Stoiko, que faz aulas três vezes por semana com o professor Mykola Kotelenets numa escola pública no centro de Kiev. — A capoeira nos ajuda a mudar nossos pensamentos, esquecer da guerra e descansar mentalmente.

O clima entre os alunos é de descontração, sobretudo entre crianças e adolescentes como Karina Sylantieva, de 13 anos, que decidiu fazer capoeira por conselho do pai.

— Gostamos do Brasil, de sua cultura, e as aulas são muito legais — conta a menina, enquanto espera o professor entrar num grande ginásio decorado, entre outros elementos, com uma bandeira do Brasil.

Kotelenets descobriu a capoeira há 25 anos, assistindo a filmes estrangeiros. Há 23 anos, é professor de capoeira, e sua paixão pela arte marcial e pelo Brasil já o levou até o Rio de Janeiro, onde morou por temporadas. O professor lembra bem de sua vida em Copacabana e no Leme, e tenta transmitir a seus alunos o que ele chama de “estilo de vida carioca”. Na guerra, mais do que nunca, diz esse ucraniano que fala um português precário, mas esforçado, “o Brasil e sua cultura nos ajudam a serenar nossas mentes e nossas almas”.

— Eu digo a meus alunos que os cariocas sabem viver. Eles são tranquilos, brincalhões, mesmo tendo muitos problemas. Gosto de compartilhar com eles o que aprendi no Brasil, sobretudo esse estilo de vida tão especial — afirma Kotelenets, que no início da guerra integrou grupos de defesa paramilitares no front.

O professor de capoeira esteve na cidade de Bucha, próxima a Kiev, durante o período em que a região esteve ocupada por tropas russas. Cicatrizes em seus braços são marcas de batalhas sobre as quais prefere não falar.

— Depois de lutar no front, voltava para casa e dava aulas virtuais de capoeira, nunca abandonei meus alunos — conta o professor.

Nos últimos tempos, alguns de seus alunos foram recrutados, e Kotelenets confirma, com a voz embargada, que já perdeu “grandes amigos”.

— A capoeira criou uma comunidade. Não são meus alunos, são meus amigos. Me comunico com os que estão no front todos os dias para saber como estão e tento ajudá-los. É muito difícil — desabafa o professor, minutos antes de começar uma aula e encarar o desafio de desestressar mais de 20 pessoas que chegam até o local visivelmente cansadas e tensas.

As crianças são a parte mais fácil, diz Kotelenets; os adultos, o maior desafio:

— Por duas horas, os alunos não pensam sobre a guerra, os ataques aéreos. Cantamos, ensino músicas em português. Para eles, é uma terapia. Com as crianças é mais simples, elas brincam, sorriem e a energia é sempre boa. Mas com os adultos é mais complicado. As pessoas estão deprimidas, e faço um esforço enorme para fazê-los se sentir melhor. Por momentos é muito difícil.

No começo da aula, antes do aquecimento, o professor canta com seus alunos em português. O grupo tenta acompanhar sem entender muito a letra, mas contagiado pelo entusiasmo desse ucraniano apaixonado pelo Brasil, especialmente pelo Rio.

Desde que a guerra começou, a vida em Kiev passou por várias fases. Nos primeiros meses, contam moradores, quem não fugiu optou por permanecer muito tempo em casa. O medo era grande e levar uma vida normal, quase impossível. Com o passar dos meses, e o estresse chegando a níveis elevados, os ucranianos resolveram, gradualmente, retomar suas atividades. Os bares e restaurantes voltaram a funcionar normalmente, fechando apenas no horário em que vigora o toque de recolher, da meia-noite às 5h.

Quando as sirenes tocam alertando sobre ataques aéreos, ucranianos como Stoiko deixaram de refugiar-se em abrigos. Ficar tantas noites sem dormir é inviável, e o jeito foi confiar nos sistemas de defesa antiaérea. Nessas horas, diz o produtor rural, a capoeira ajuda, e muito.

— A capoeira para nós é um modo de vida, de pensar, de relaxar. Quando estou muito tenso, ponho em prática o que aprendo na aula e me faz muito bem. Sou muito agradecido ao Brasil por este pedaço de sua cultura que chegou até nós — afirma Stoiko, ao lado do filho, que apenas sorri e, sem muita paciência para entrevistas, pede para voltar a brincar com os amigos.

O que para seu pai é terapêutico, para ele é apenas brincadeira.

*A repórter viajou a convite do governo ucraniano


Fonte: O GLOBO

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