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Na contramão de países europeus e dos EUA, o Brasil ainda caminha a passos lentos para legalizar a produção do cânhamo, variedade genética da cannabis, usada para fins industriais, como a produção de tecidos, materiais de construção e insumos.
Enquanto suas sementes são ricas em nutrientes, como proteínas, o caule e as folhas ajudam na restauração do solo durante a entressafra. O cânhamo é resistente, e pode ser usado na produção de concreto e bioplástico.
O cânhamo tem menos de 0,3% de tetrahidrocanabinol (THC) — composto presente na cannabis, conhecido por afetar o sistema nervoso central, alterando o humor, a consciência, o comportamento e outras funções cerebrais.
Indústria de US$ 18,6 bi até 2027
Para se ter ideia do potencial do mercado, documento da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) estima que a indústria mundial de cânhamo pode alcançar US$ 18,6 bilhões até 2027 — quase quatro vezes o valor de 2020. No entanto, o plantio da cannabis, inclusive sua variedade industrial, não é permitido no Brasil, o que faz com que as empresas nacionais precisem comprar o produto de fornecedores estrangeiros.
As linhas de roupa produzidas com cânhamo, por marcas como Reserva e Chico Rei, por exemplo, têm custos maiores, por causa da necessidade de importação do material. O debate sobre regulamentar o plantio de cânhamo pouco avançou em anos recentes, em grande parte pela confusão entre essa variedade e a usada para produzir a maconha.
A pesquisadora Beatriz Marti Emygdio, coordenadora de um grupo de trabalho sobre cannabis na Embrapa Clima Temperado, esclarece que o cânhamo e a maconha são variedades genéticas da Cannabis sativa, cada uma com suas particularidades, como a concentração THC — a maconha tem concentração de 7% a 10%.
Sucesso em camisetas
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No Brasil, o uso mais comum do cânhamo é na indústria têxtil. A Chico Rei lançou sua primeira linha de camisetas com cânhamo no ano passado. As estampas foram inspiradas no tema “maconha” e fizeram sucesso entre consumidores: foram vendidas 600 camisetas em dois dias. Nova linha deve ser lançada este ano, com outro tema e 1,4 mil produtos. O cânhamo entrou no radar do CEO, Bruno Imbrizi, por ser mais resistente que o algodão.
— Você consegue tatear e perceber que é cânhamo. Isso não quer dizer que é mais quente. Uso justamente em momentos de calor — diz.
Foi por conta do aspecto rústico que a Levi’s começou a investir no desenvolvimento de um novo tecido em 2019, o cottonized hemp, resultado de processo destinado a amaciar o cânhamo, fazendo com que tenha textura suave, semelhante ao algodão. O método consiste no uso de água, pressão e enzimas para decompor o caule da planta. A vantagem em usar cânhamo, segundo a Levi’s, é que a planta demanda menos água e energia, além de crescer mais rapidamente.
— O cânhamo demanda uso mínimo de fertilizantes, e pode enriquecer o solo circundante— diz Thiago Leão, gerente de Merchandising para Brasil, Argentina e Uruguai na Levi Strauss.
Menor uso de água
Em termos de cultivo, o cânhamo requer muito menos água na comparação com o algodão convencional e metade da quantidade de terra. Ainda assim, segundo Leão, os custos de produção de roupas de cânhamo tendem a ser maiores:
— Estamos sujeitos às variações associadas ao trabalho com importados, principalmente do câmbio, que está ligado aos custos de produção e preço do produto final ao consumidor.
Patrícia Villela Marino, presidente do Instituto Humanitas 360, que desenvolve projetos focados em cidadania, afirma que o cultivo de cânhamo retira mais gás carbônico da atmosfera do que o total emitido da colheita até o transporte. Além disso, o caule e as folhas do cânhamo são bons para o solo, ajudando na restauração entressafras:
— Outras vantagens são suas sementes nutritivas, uma das melhores fontes vegetais de proteínas (quase 40% da semente é proteína) e têm ácidos graxos saudáveis, como ômega 3 e 6.
Legal nos EUA e na UE
Bruno Pegoraro, presidente do Instituto de Pesquisas Sociais e Econômicas da Cannabis (IPSEC), afirma que aproximadamente 40 países já autorizaram o plantio de cânhamo. Nos EUA, segundo a FDA, uma lei sancionada em 2018 permitiu a produção e comercialização de cânhamo, incluindo derivados, com concentração de THC inferior a 0,3%.
A área dedicada aumentou substancialmente na União Europeia, de pouco mais de 20 mil hectares em 2015 para 32 mil em 2022. No mesmo período, a produção de cânhamo aumentou 84,3%, chegando a 179 mil toneladas.
Rafael Arcuri, consultor do Madruga BTW e presidente da Associação Nacional do Cânhamo Industrial (ANC),diz que ele nunca foi proibido na UE. Alguns países, porém, criaram normas desautorizando o cultivo e comércio da planta, como Alemanha e Canadá, que voltaram a legalizar o cânhamo na década de 1990.
Segundo a Comissão Europeia, o cultivo ajuda nas metas de sustentabilidade da UE: um hectare da planta sequestra de 9 a 15 toneladas de CO2 (semelhante à sequestrada por uma floresta jovem), mas leva só cinco meses para crescer.
Um dos usos do cânhamo que cresce na Europa é para a produção de concreto. No Brasil, o Departamento de Engenharia Têxtil da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) realiza pesquisa para a produção de blocos à base de cânhamo junto com a ONG Reconstruir Cannabis e a startup de pesquisas Liamba.
Blocos para construção
O projeto consegue resíduos de cannabis com pacientes autorizados judicialmente a plantar para fins medicinais. Viviane Muniz Fonseca, pesquisadora responsável, explica que o hempcrete é um bloco produzido com grande quantidade de cimento, junto a barro ou areia, além da fibra da planta.
— Testei um novo bloco com barro, bem pouco cimento e cânhamo. Além de ser mais resistente, proporciona maior conforto térmico.
Rafael Arcuri explica que a portaria nº 344/1998 do Ministério da Saúde, atualizada pela Anvisa, desautoriza o plantio e comércio da cannabis e derivados no Brasil. O país internalizou a Convenção Única sobre Entorpecentes da ONU, que distingue o cânhamo como forma sem efeito psicoativo da cannabis, mas não possui definição interna clara sobre a distinção. Um dos caminhos possíveis para regularizar o mercado seria alterar a portaria, afirma Gustavo Swenson, sócio de Light Science do Mattos Filho:
— Outro caminho seria pela via legislativa. Ainda que a Convenção da ONU faça a distinção, o texto esbarra na portaria 344
Fonte: O GLOBO
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