'Os garotos foram capazes de, mesmo no momento mais extremo, pensar no outro', diz autora de livro sobre incêndio no Ninho

Escritora Daniela Arbex conta bastidores de sua obra e reflete sobre tragédia, que completa cinco anos nesta quinta

Em “Longe do Ninho” (Ed. Intrínseca), a escritora Daniela Arbex se debruça sobre o incêndio no CT do Flamengo que, há cinco anos, matou dez garotos da base — o caso ainda corre na Justiça. Além de tentar fazer o leitor compreender o tamanho da perda para as famílias, ela fala sobre a cultura da impunidade e negligências que fazem com que a tragédia possa ser chamada de tudo, menos de surpreendente. Mas o momento mais impactante da obra é a reconstituição do que ocorreu no contêiner em chamas.

Acha que os familiares conseguirão ler este capítulo?

Eu li para eles antes. É uma coisa que faço sempre. Neste caso, a leitura teve um papel mais especial, que foi revelar aos pais que os filhos não morreram dormindo. Eu entendia que não podia permitir que ele soubessem lendo o livro ou que alguém contasse. Estaria traindo a confiança deles.

Eles acreditavam nisso?

Sim. Acho que foi a leitura de capítulo mais difícil. Por exemplo, a reação do pai do Gedinho foi devastadora. Ele deitou a cabeça na mesa e chorou. Foi muito forte. Mas é uma questão que acho libertadora. Em todos os casos as famílias se sentiram aliviadas quando descobriram a verdade.

Como foi a reação das famílias do Samuel Rosa e do Jorge Eduardo (o primeiro tentou carregar o segundo, e seus corpos se fundiram)?

A mãe do Samuel não sabia. Ninguém sabia. Então eu achava que era um consolo saber que essa afetividade de alguma forma venceu o medo da morte. No momento do desespero, o Samuel levar o Jorge Eduardo nas costas... Tipo: “Não saio daqui sem você”. Isso foi muito grande. E aí a Cristina ficou muito emocionada. Foi um consolo saber o que o filho fez. E a Alba (mãe do Jorge Eduardo) também. Começou a chorar e falou: “É a primeira vez que choro na frente do meu marido”.

O livro Longe do Ninho aborda o incêndio que matou 10 atletas da base do Flamengo em 2019 — Foto: Divulgação

Como foi pedir às famílias que revivessem essas dores?

Eu que fui procurada. Em janeiro de 2022 dei uma entrevista para o Fantástico em que falava do “Arrastados” (sobre o rompimento da barragem de Brumadinho-MG), e a Leda, mãe do Bernardo, me escreveu naquela noite: “Eu te assisti e gostei muito do que você falou. Estou lendo muito sobre luto, e já tinham me falado do seu trabalho”. 

A gente passou a conversar nas redes sociais, ela me mandava fotos do Bernardo e aquilo foi mexendo comigo. Nunca cobri esportes, nunca imaginei que fosse fazer um livro sobre esse tema. Mas quando comentei que estava me correspondendo com a Leda, a editora disse que dava um livro.

Então esse contato abriu as portas para outras famílias. Mas confesso que nem todas estavam dispostas. Foi um processo também de conquistar a confiança. A Alba foi a última mãe que aceitou. Eu disse: “O Jorge Eduardo vai ser o único menino que não vou contar a história. É isso mesmo que você quer?”.

Sabendo de todo o horror que viveram, acredita que os sobreviventes conseguirão lidar com os traumas?

A gente sempre ouviu uma narrativa de que adultos foram heróis naquela cena. Mas acho que esse título tem que ser reservado aos sobreviventes. Eles foram capazes, até os que morreram, de mesmo no momento mais extremo pensar no outro. Acordaram um ao outro, chamaram quem dormiu de novo... É tão impressionante os meninos que viveram esse trauma voltarem a jogar. 

Ah, eles superaram? Acho que não. Tanto que tem meninos que inicialmente disseram que não falariam (para o livro), que por muito tempo não entraram num lugar com ar-condicionado... Eles carregam traumas. Mas essa afetividade e a decisão de seguir jogando por eles e pelos dez é incrível. Foi a forma encontrada para lidar com isso.

Eu falei com oito dos 16 sobreviventes. Na leitura de capítulo para o Cauan, o último a sair do contêiner pela janela, quando cheguei na parte do incêndio ele disse: “Estou chocado”. Mas como alguém estava lá dentro fica chocado? Então, eles ainda não sabem tudo. Como teve menino que falou que não aguentava, teve menino que disse que não conseguiria falar. Mas, para um deles, o Pablo Ruan, falei: “Você é o único sobrevivente do seu quarto, a voz dos seus irmãos. Precisa falar por eles”.

A escritora Daniela Arbex, autora do livro Longe do Ninho — Foto: Divulgação

Você já se debruçou sobre o incêndio da boate Kiss, cujo julgamento foi anulado. Teme que o Ninho sofra risco de impunidade?

Uma história que não é contada é como se não tivesse existido. Então a primeira coisa que quis fazer é não deixá-la ser esquecida. Outra coisa que a gente precisa pensar é que o tempo da Justiça não é o mesmo tempo de quem precisa dela. Para quem espera, um dia a mais é insuportável. Imagina cinco anos. 

E aí a gente vai vendo que tem uma similaridade entre o que aconteceu no Ninho, em Brumadinho, na Kiss, que é a cultura da impunidade. Porque a falta de responsabilização alimenta a próxima tragédia. De 2012 a 2019 os órgãos públicos do Rio deram inúmeras chances para o Flamengo se adequar. Já os meninos não tiveram nenhuma.

Acha que o Flamengo e o futebol brasileiro aprenderam algo com a tragédia?

Não posso responder pelo Flamengo. Mas uma coisa é emblemática. Quando um clube cria um museu, disposto a contar sua história, e nesse museu parte dessa história não é contada, isso chama a atenção, né? Como eu disse, se uma história não é contada é como se ela não tivesse existido. Então é essa a resposta que posso te dar.


Fonte: O GLOBO