Com uma das legislações mais duras do mundo, mulheres que sofreram aborto espontâneo ou tiveram complicações obstétricas podem pegar penas de até 30 anos
Lilian foi presa no hospital onde havia acabado de dar à luz e Alba foi presa no funeral do seu bebê. Acusadas de matá-los, foram condenadas a 30 anos de prisão em El Salvador, onde abortos e emergências obstétricas são punidos como um crime.
Lilian passou oito anos presa e Alba dez. Mas a liberdade de ambas só veio de uma revisão da sentença. É uma vitória incompleta para mulheres num país que insiste em manter uma das leis contra o aborto mais severas do mundo.
— Tive meu bebê normal, mas sofri uma ruptura no útero. Eles me sedaram para fazer uma curetagem. Três dias depois que acordei, descobri que ele havia morrido — disse Lilian à AFP.
Lilian em entrevista para Agence France-Presse — Foto: Marvin Recinos | AFP
Ela tinha 20 anos, uma filha de dois, era casada e trabalhava quando tudo aconteceu, em novembro de 2015, no hospital público de Santa Ana, no oeste de El Salvador.
— Me acusaram primeiro de abandono e desamparo, mas a promotoria classificou o crime como ‘homicídio qualificado’ e fui condenada em maio de 2016. Pensei que minha vida estava arruinada para sempre — desabafou
Um ano atrás, soube que sua filha morreu de sepsis neonatal:
— Se a tivessem tratado a tempo, ela não teria morrido. Eu não teria perdido tantos anos da minha vida na cadeia.
Ajudada pelas organizações Coletivo Feminista e Grupo Cidadã pela descriminalização do aborto, Lilian saiu da prisão em novembro e foi a última das 73 salvadorenhas condenadas entre 30 e 50 anos na última década, encarceradas por abortos ou complicações obstétricas.
'O mundo veio sobre mim'
Ainda que cada uma tenha sua história, quase todas estas mulheres são pobres, com pouca educação e de zonas rurais, onde os serviços de saúde são precários, explicou Arturo Castellanos, assistente social do Grupo Cidadã. Algumas inclusive sofreram violências, como Alba Lorena Rodríguez, que foi estuprada por um conhecido e ficou grávida. Tinha 21 anos e duas filhas pequenas.
Um dia de dezembro de 2009, com cinco meses de gravidez, sentiu fortes dores. O parto aconteceu em sua casa na zona rural, no sudoeste do país.
A salvadorenha Alba Lorena Rodriguez reage antes de receber alta do centro de reabilitação feminina em Ilopango, El Salvador, em 7 de março de 2019 — Foto: Marvin Recinos
— Tive que dar à luz sozinha, desmaiei, ele caiu — disse Alba.
No dia seguinte, uma vizinha chamou a polícia e foi ela presa no velório do família. Segundo ela, houve um julgamento injusto e sem direito à defesa.
— Senti que o mundo veio sobre mim, porque sabia que não iria ver minhas filhas e estavam me condenando por algo que eu não tinha feito — afirmou. — Quem me violou estava livre com a sua família e eu… presa. A lei é bastante injusta.
Para Lilian, o mais difícil foi perder toda a infância da sua outra filha, que ela deixou sob os cuidados dos avós com apenas dois anos de idade:
— Somente a vi duas vezes, não a vi crescer. Meu pai morreu em 2012 e eu me dei conta em 2019 quando saí (da prisão), minhas filhas já iam para escola e minha irmã tinha morrido — resumiu Alba.
No Dia Internacional da Mulher do ano passado, manifestantes ganharam as ruas de São Salvador para demonstrarem insatisfação com a lei antiaborto — Foto: Marvin Recinos
Na América Latina o aborto é legal em México, Argentina, Colômbia, Cuba e Uruguai. El Salvador proibiu em 1998 o aborto sem exceções, assim como Nicarágua, Honduras, Haiti e República Dominicana. Mas nenhum dos países possui penas tão severas: punem com penas de dois a oito anos de cárcere. Em El Salvador, a interrupção da gravidez frequentemente é classificada como “homicídio qualificado”, o que gera penas de 30 a 50 anos de prisão.
Desde 1998, os casos e aborto e emergências obstétricas de 199 mulheres foram criminalizados e, embora Lilian tenha sido a última a sair da prisão, existem sete mulheres que enfrentam processos de denúncia sem estarem presas, confirmou o Grupo Cidadã
Mulher com bandanda com os dizeres "Juntas resistimos" em manifestação contra a lei antiaborto — Foto: Marvin Recinos
— Entram sendo culpadas em juízos cheios de moralidade. Se segue criminalizando as mulheres. É preciso modificar a lei — disse Castellanos.
Mas o presidente Nayib Bukele, recém-eleito para outro mandato de cinco anos com um controle quase total do Congresso, já se mostrou contrário o aborto.
Lilian disse estar consciente de que existe muito o que se fazer para que outras mulheres não sofram o que ela sofreu:
— Ninguém pode me devolver o tempo perdido. Estou reconstruindo o vínculo com minha filha. Quero estudar e ir adiante. Gostaria de passar essa página da minha vida e começar do zero — contou. — A lei segue igual, a luta não para.
Fonte: O GLOBO
— Tive meu bebê normal, mas sofri uma ruptura no útero. Eles me sedaram para fazer uma curetagem. Três dias depois que acordei, descobri que ele havia morrido — disse Lilian à AFP.
Lilian em entrevista para Agence France-Presse — Foto: Marvin Recinos | AFP
Ela tinha 20 anos, uma filha de dois, era casada e trabalhava quando tudo aconteceu, em novembro de 2015, no hospital público de Santa Ana, no oeste de El Salvador.
— Me acusaram primeiro de abandono e desamparo, mas a promotoria classificou o crime como ‘homicídio qualificado’ e fui condenada em maio de 2016. Pensei que minha vida estava arruinada para sempre — desabafou
Um ano atrás, soube que sua filha morreu de sepsis neonatal:
— Se a tivessem tratado a tempo, ela não teria morrido. Eu não teria perdido tantos anos da minha vida na cadeia.
Ajudada pelas organizações Coletivo Feminista e Grupo Cidadã pela descriminalização do aborto, Lilian saiu da prisão em novembro e foi a última das 73 salvadorenhas condenadas entre 30 e 50 anos na última década, encarceradas por abortos ou complicações obstétricas.
'O mundo veio sobre mim'
Ainda que cada uma tenha sua história, quase todas estas mulheres são pobres, com pouca educação e de zonas rurais, onde os serviços de saúde são precários, explicou Arturo Castellanos, assistente social do Grupo Cidadã. Algumas inclusive sofreram violências, como Alba Lorena Rodríguez, que foi estuprada por um conhecido e ficou grávida. Tinha 21 anos e duas filhas pequenas.
Um dia de dezembro de 2009, com cinco meses de gravidez, sentiu fortes dores. O parto aconteceu em sua casa na zona rural, no sudoeste do país.
A salvadorenha Alba Lorena Rodriguez reage antes de receber alta do centro de reabilitação feminina em Ilopango, El Salvador, em 7 de março de 2019 — Foto: Marvin Recinos
— Tive que dar à luz sozinha, desmaiei, ele caiu — disse Alba.
No dia seguinte, uma vizinha chamou a polícia e foi ela presa no velório do família. Segundo ela, houve um julgamento injusto e sem direito à defesa.
— Senti que o mundo veio sobre mim, porque sabia que não iria ver minhas filhas e estavam me condenando por algo que eu não tinha feito — afirmou. — Quem me violou estava livre com a sua família e eu… presa. A lei é bastante injusta.
Para Lilian, o mais difícil foi perder toda a infância da sua outra filha, que ela deixou sob os cuidados dos avós com apenas dois anos de idade:
— Somente a vi duas vezes, não a vi crescer. Meu pai morreu em 2012 e eu me dei conta em 2019 quando saí (da prisão), minhas filhas já iam para escola e minha irmã tinha morrido — resumiu Alba.
No Dia Internacional da Mulher do ano passado, manifestantes ganharam as ruas de São Salvador para demonstrarem insatisfação com a lei antiaborto — Foto: Marvin Recinos
Na América Latina o aborto é legal em México, Argentina, Colômbia, Cuba e Uruguai. El Salvador proibiu em 1998 o aborto sem exceções, assim como Nicarágua, Honduras, Haiti e República Dominicana. Mas nenhum dos países possui penas tão severas: punem com penas de dois a oito anos de cárcere. Em El Salvador, a interrupção da gravidez frequentemente é classificada como “homicídio qualificado”, o que gera penas de 30 a 50 anos de prisão.
Desde 1998, os casos e aborto e emergências obstétricas de 199 mulheres foram criminalizados e, embora Lilian tenha sido a última a sair da prisão, existem sete mulheres que enfrentam processos de denúncia sem estarem presas, confirmou o Grupo Cidadã
Mulher com bandanda com os dizeres "Juntas resistimos" em manifestação contra a lei antiaborto — Foto: Marvin Recinos
— Entram sendo culpadas em juízos cheios de moralidade. Se segue criminalizando as mulheres. É preciso modificar a lei — disse Castellanos.
Mas o presidente Nayib Bukele, recém-eleito para outro mandato de cinco anos com um controle quase total do Congresso, já se mostrou contrário o aborto.
Lilian disse estar consciente de que existe muito o que se fazer para que outras mulheres não sofram o que ela sofreu:
— Ninguém pode me devolver o tempo perdido. Estou reconstruindo o vínculo com minha filha. Quero estudar e ir adiante. Gostaria de passar essa página da minha vida e começar do zero — contou. — A lei segue igual, a luta não para.
Fonte: O GLOBO
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