Vacinação teve sucesso ao frear variante canina do vírus no passado, mas ataques de pets a mamíferos alados infectados têm aumentado, dizem especialistas
A ocorrência de raiva em morcegos frugívoros e o aumento da interação de pets com esses animais silvestres coloca o Brasil em uma situação de risco para novos casos humanos da doença, afirmam especialistas.
Cientistas suspeitam que o caso de raiva em um cão registrado na semana passada em São Paulo seja fruto de contato com esses mamíferos alados. Os pesquisadores afirmam que, apesar de a vacinação ter avançado muito, é preciso ter especial cuidado com as animais de rua, que ainda tem populações desprotegidas e eventualmente encontram morcegos.
O foco das políticas de combate são os cães, mas é preciso mobilizar também os donos e cuidadores de gatos, dizem os cientistas, em um novo estudo. O trabalho envolveu USP, Universidade Federal do Paraná e Instituto Pasteur de São Paulo, e publicou recentemente uma revisão dos dados epidemiológicos e da literatura sobre o tema de 1986 a 2022.
Se, por um lado, a vacinação de cães foi bem sucedida e reduziu os casos a uma pequena fração do que eram há 20 anos, por outro, os casos ocasionais em animais de rua, sobretudo gatos, continuam ocorrendo na mesma proporção. Os pesquisadores alertam para o risco de essa brecha se tornar uma ameaça, também para humanos.
Em 2022, pela primeira vez, a Secretaria de Vigilância em Saúde registrou mais casos de raiva em gatos do que em cães no Brasil (nove contra sete). O número é pequeno, mas veterinários e cientistas acreditam que a incidência da doença nos felinos pode estar subnotificada, em parte porque a cultura popular sempre propagou o equívoco de que só cães contraem a raiva.
— Os proprietários de gatos dificilmente vacinam, porque é mais difícil capturar e levar para vacinar, e existe outro grande problema, que são os gatos de rua abandonados. Esses é que são a maioria dos felinos caçadores, muitas vezes mal alimentados, que comem morcegos — afirma Paulo Maiorka, professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP e coautor do estudo.
Enquanto na zona rural e na floresta os morcegos hematófagos (sugadores de sangue) são mais temidos por morderem gado e às vezes pessoas, na cidade a situação é diferente. Entre os casos urbanos em humanos está aumentando cada vez mais o registro de variantes do vírus típicas dos morcegos frugívoros e insetívoros.
O estudo de Maiorka e seus coautores, publicado na revista Frontiers in Public Health, argumenta que uma nova fase da política contra raiva no Brasil precisa adotar a perspectiva de "saúde única", em que o bem estar de animais, de pessoas e do meio ambiente esteja integrado.
— Quando nós destruímos os ambientes naturais onde os morcegos vivem em equilíbrio com a doença na natureza, as populações se deslocam, e muitos podem encontrar abrigo nas grandes cidades, porque aqui nós temos inúmeros prédios abandonados, casas com sótão e estruturas desse tipo — diz o pesquisador.
Busca de contactantes
Maiorka teve experiência em lidar com um caso paulistano de raiva em 2011, quando fez a necropsia de um gato com suspeita de envenenamento numa residência perto do Parque do Ibirapuera. Ao mandar uma amostra para análise e receber um diagnóstico positivo para raiva, o pesquisador desencadeou uma campanha de mobilização para controle da zoonose, porque faziam na época 28 anos que a cidade não registrava um caso da doença.
Graças ao esforço coletivo, o que poderia ser um surto foi debelado antes de qualquer caso humano em São Paulo.
O cão encontrado com raiva na semana passada foi um caso isolado, também após mais uma década sem registros, mas é igualmente preocupante, diz Maiorka.
— Se esse animal foi abandonado, alguém o abandonou, e possivelmente o motivo do abandono foi o animal estar doente — afirma o pesquisador. — Depois do resgate, teve duas ou três pessoas que foram mordidas pelo animal e já estão em tratamento com soroterapia, mas seria importante identificar também a pessoa que abandonou, porque ela ou os familiares dela também podem ter sido agredidos pelo animal.
A doença é letal, ele explica, e potenciais vítimas são orientadas a buscar tratamento imediatamente em hospitais. Registros de animais resgatados com raiva em outras capitais, como Recife e Brasília, não terminaram tão bem, e houve morte de pessoas por raiva contraída de gatos.
Buscar contactantes não costuma ser uma tarefa fácil, mas existem casos de sucesso no passado. Em Curitiba, a vigilância sanitária realizou em 2014 a busca de pessoas que tinham entrado em contato não com um pet raivoso, mas diretamente com um morcego infectado. Espalhando mensagens pelas redes sociais, conseguiram encontrar duas pessoas contactantes e colocá-las em tratamento, conta Maiorka.
Fonte: O GLOBO
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