
No futebol, já se diz há algum tempo que as pessoas torcem mais pelo atleta que pelo clube. Em corporativês, a ideia se resume com a frase de efeito “player is the new player” — em inglês, para ficar bonito no LinkedIn. Algo como dizer que o jogador é o agente mais poderoso do mercado. E é parcialmente verdade. Neymar é um dos maiores expoentes deste fenômeno contemporâneo.
Contemporâneo, porque o fenômeno só faria sentido num futebol globalizado e num mundo em que conexões entre as pessoas foram encurtadas pela digitalização. Pelé tinha torcedores do Pelé, não necessariamente do Santos, nos anos 1960. Assim como Zico, Sócrates, Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho em cada uma das décadas subsequentes. É verdade. Neymar está inserido noutro contexto.
Enquanto jogava no Brasil, Neymar tinha admiradores e simpatizantes entre santistas e não-santistas. Isto já o destacava de quase todos da geração dele. Quando ele vai para o Barcelona e joga pela seleção brasileira, a massa de seguidores aumenta. E ela passa a migrar de clube para clube. O Paris Saint-Germain ficou muito maior enquanto teve a presença dele em campo. Agora é a vez do Al-Hilal.
O jogador tem a capacidade de gerar torcedores para o clube durante a passagem? Pesquisas ainda captarão dados a respeito da fase de Neymar no PSG, mas existem indicativos noutros casos. Quando a empresa Sport Track levantou para quem torciam os brasileiros em 2010, o Milan de Kaká apareceu com 30%. Em 2020, com performance ruim e sem ídolos brasileiros em campo, o clube caiu para 3%.
Volto ao ponto: ainda que Neymar possa não deixar torcedores pelos lugares que passa, o fato é que ele os carrega, e isto só acontece porque o mundo foi globalizado e digitalizado. Se não fossem ambos os fatores, o jogador não teria fãs americanos, chineses e sauditas. As pessoas não conseguiriam acompanhar cada passo que ele dá, nem poderiam assistir a todos os seus jogos.
Pelé encerrou a carreira no New York Cosmos, Zico foi para a Udinese, Sócrates jogou na Fiorentina. Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho passaram a maior parte de suas carreiras em clubes europeus. Ainda que a imprensa tenha feito a cobertura dessas histórias, em texto, áudio e vídeo, o alcance e a instantaneidade não se comparam a Neymar emoldurado pelo futebol contemporâneo.
Se o bônus do “player is the new player” vem em dinheiro, o ônus está na expectativa e nas narrativas que as pessoas criam para o jogador. Uma conta que Neymar paga desde o começo e que ficou evidente desde a decisão de ir para o Al-Hilal. Público e imprensa se veem no direito de julgar o que ele deveria fazer, onde deveria viver, por qual clube deveria jogar —em tom condenatório.
Jornalistas e influenciadores disseram que Neymar desistiu do futebol. Fico imaginando o bafafá, se discutíssemos as escolhas profissionais dessas figuras. Alguém que deixa a Globo desiste de sua profissão? O que falta a quem comenta futebol no rádio ou na internet, em vez de estar na televisão aberta? “Fulano tinha tanto potencial, Ciclano já foi tão importante”. É isso que fazem com atletas.
Minha primeira reação à decisão de Neymar foi de decepção, admito. Depois de tudo o que foi dito na última semana, recuo. Não me alinho a este julgamento catastrófico e polemista. “Player is the new player”, mas não quer dizer que tenhamos o direito de depositar nessas pessoas as nossas projeções e frustrações. Desses males este nosso mundo, globalizado e digital, já está farto.
Fonte: O GLOBO
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