Nicolelis lança livro na China e reitera: IA não é inteligente nem artificial

Nicolelis lança livro na China e reitera: IA não é inteligente nem artificial

Neurocientista brasileiro apresentou ideias da obra a grupo reunido na sede da Baidu, uma das gigantes chinesas de tecnologia

A ambição do governo chinês em se tornar a maior potência em inteligência artificial do planeta se traduz em números. Graças a investimentos e incentivos pesados, o país já lidera a produção mundial de pesquisa e patentes e suas empresas de tecnologia estão entre as maiores do setor. Agora, uma visão diferente é apresentada ao público chinês pelo neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, referência mundial no estudo do que, afinal, está por trás do que se convencionou chamar de inteligência artificial: o cérebro humano.

Professor emérito da Universidade de Duke, onde chefiou o Centro de Neuroengenharia, Nicolelis está lançando a versão em chinês de seu livro “O Verdadeiro Criador de Tudo, – Como o Cérebro Humano Esculpiu o Universo como Nós o Conhecemos”. Numa conversa online nesta semana, ele apresentou as ideias do livro a um grupo reunido na sede da Baidu, uma das gigantes chinesas de tecnologia.

A seguir, alguns trechos (editados para resumir as ideias):

“Levou cinco anos para escrever este livro. Eu quis mostrar o cérebro de uma forma completamente diferente. Queria mostrar que de fato o cérebro é o verdadeiro criador de tudo, por ser o órgão de nosso corpo responsável por criar nossa percepção de realidade. Poucos pensam nisso. O cérebro é como um filtro que nos dá uma interpretação do que há no universo, criando uma versão que somos capazes de entender. Nós lhe damos significado, nomes, estabelecemos relações de causa e efeito, regras como as leis da física e do universo. E ao fazermos isso, criamos uma narrativa do que é o universo.

Não me refiro ao aspecto médico, de como os circuitos do cérebro são responsáveis por permitir que movamos nossos corpos, por exemplo, estou falando do cérebro em um nível muito mais alto, como o criador da realidade. Uma das principais formas de o cérebro fazer isso é absorver tudo o que é informação potencial. E só se torna informação por causa da interferência do cérebro, que assim cria realidade.

Ao longo da história, tivemos versões completamente diferentes do que é o universo. Há 15 mil anos os animais e o mundo natural eram descritos como o centro do universo. No século 16 passou a ser o homem. Na mais recente imagem divulgada pela Nasa, descrevendo a teoria do Big Bang, os humanos e animais desaparecem, eles são só uma poeira, um pequeníssimo elemento do universo. As três visões são abstrações mentais criadas pelos seres humanos para tentar explicar nossa origem.

Tudo isso é criado pelo cérebro humano. Mas como ele faz isso? Ouvimos ao longo dos anos comparações entre o cérebro e o computador digital. Mas essa comparação está muito longe da realidade. O cérebro não é uma máquina digital. A maior parte do que o cérebro faz é analógica, ele não tem distinção entre hardware e software. Computa com seu hardware, com o tecido orgânico que o compõe. Essa própria interação que estamos tendo agora mudará as microestruturas de nossos cérebros para sempre, porque criará memórias, impressões. E isso está mudando a própria estrutura do cérebro.

Essa é uma diferença profunda entre computadores digitais e o que eu chamo de um computador orgânico como o cérebro. Ciência, matemática, filosofia, causalidade, espaço e tempo, religião, mitologia, arte, são alguns exemplos das abstrações mentais criadas pelo cérebro para, de alguma forma, dar sentido ao que existe aqui fora. O cérebro não está tentando copiar a realidade em seus mínimos detalhes, mas basicamente tentando otimizar nossas chances de sobrevivência com base no que pode absorver do universo.

Para isso, criamos os instrumentos que definem o que chamo de universo humano, que é a melhor explicação que podemos conceber da realidade. E o interessante é que provavelmente jamais seremos capazes de explicar totalmente a realidade, porque estamos limitados por esse filtro, chamado cérebro.

Há três anos, quando o livro foi publicado nos EUA, o debate sobre inteligência artificial ainda não era tão grande como é hoje, mas eu vi que estava chegando. Eu termino o livro afirmando que inteligência artificial não pode ser definida por esse nome. Inteligência artificial não é nem inteligência, nem artificial. Inteligência é biológica por definição. É o que emerge quando organismos interagem com o universo ao seu redor e com outros organismos para otimizar sua sobrevivência.

Inteligência é propriedade de organismos vivos, o que é completamente diferente de mecanismos como computadores, que usam lógica digital e requerem programação. O tipo de aprendizado que eles fazem é totalmente diferente do que acontece com organismos vivos, um processo chamado seleção natural, numa quase infinita sequência de eventos aleatórios que não pode ser reproduzido em qualquer laboratório.

Não há possibilidade de criarmos um algoritmo capaz de reproduzir os eventos dos últimos milhões de anos que levaram ao desenvolvimento do cérebro humano até ele ser o que é hoje. Então não dá para usar a palavra inteligência para um computador, temos que arranjar uma outra melhor. Também não é artificial, porque é criada por seres humanos.

Na verdade, a inteligência artificial tem uma história bastante instável. Houve fases de enorme entusiasmo de governos, da indústria e da sociedade como um todo, mas aí algo acontece e o setor quebra. No início deste século houve um desses momentos, em que o setor atingiu o pico e depois entrou em colapso. Agora estamos vendo mais uma fase de desenvolvimento do poder dos computadores e um novo interesse em propaganda e marketing em todo o mundo.

Mas se continuarmos ouvindo essas previsões e promessas que nunca se materializam, como a criação de um cérebro artificial que substituirá os seres humanos e o trabalho humano como um todo, veremos que jamais chegaremos a isso. Já aconteceu muitas vezes e temo que teremos um outro colapso dessa indústria, porque quando prometemos demais e não entregamos, pagamos um alto preço.

Não é preciso mudar o cérebro para mudar a realidade. Basta mudar as estatísticas, imagens e a informação potencial que o cérebro adquire. O fenômeno das fake news no mundo é muito conhecido. Agora estamos vendo as 'deep fakes' em filmes, que distorcem a realidade. 

Mesmo que você saiba que não é verdade, elas estão se tornando tão convincentes que é muito difícil distinguir entre o que é verdadeiro e o que não é. Não é preciso agir fisicamente no cérebro para criar uma realidade alternativa. Basta mudar o que o cérebro recebe como informação. Isso já está acontecendo hoje, e poderá mudar dramaticamente como percebemos a realidade.”


Fonte: O GLOBO

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