Líder de quilombo na Lagoa, na Zona Sul, diz que pai chegou ao Rio há 108 anos: 'o racista pensa que o negro não pode ficar em área nobre'

Líder de quilombo na Lagoa, na Zona Sul, diz que pai chegou ao Rio há 108 anos: 'o racista pensa que o negro não pode ficar em área nobre'

Quilombo Sacopã resiste na região da Lagoa, mas terra ainda está em fase final de titulação

Aos 81 anos, José Luiz Pinto, também conhecido como Luiz Sacopã, é ex-presidente da Associação das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro. E o patriarca do Quilombo Sacopã, na Lagoa, na Zona Sul carioca, uma das regiões mais valorizadas do Brasil. 

Pinto conta que há cerca de 108 anos seus pais, filhos de escravizados, foram para a região em busca de trabalho e ali se estabeleceram. Hoje são oito núcleos de descendentes uma mesma família, totalizando 28 pessoas.

Entre lutas diárias para se manter em um espaço rodeado por prédios e mansões, Sacopã conta que os dados do IBGE são importantes para dar visibilidade aos quilombos, ainda que ele acredite que existem muito mais do que os dados apresentam.

— Existem muitas pessoas que não sabem o que é um quilombo. Agora eles vão ter a curiosidade, quando verem as notícias de que tem 1 milhão e tantos quilombolas. Vão procurar saber como se caracteriza, como a pessoa pode se autoidentificar. Essa pesquisa do IBGE é ótima. Tomara que venham outras para o pessoal respeitar a gente. Nós, negros, tivemos muito avanço em relação à condição de reconhecimento da nossa cultura — diz.

De acordo com Sacopã, há 53 quilombos no estado do Rio, mas apenas três são regularizados com a titulação da terra, processo que garante que a área não possa ser futuramente dividida, penhorada ou repassada a outro dono. 

O próprio Quilombo Sacopã ainda não é titulado. O processo está em fase final , embora já seja reconhecido como território oficialmente delimitado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e pelo IBGE. Além da luta contra a especulação imobiliária, que muitas vezes tenta impedir que quilombos sejam titulados, Sacopã explica que muitas vezes os próprios quilombolas acabam não se identificando como tal.

— A própria população às vezes não tem interesse em se identificar, porque acham que quilombola é ser escravo, e também porque perdem direitos: a partir do momento que você é reconhecido como quilombola, você não pode comercializar o território. Então tem muitas pessoas que não querem se autoidentificar, e com isso podem acabar perdendo a terra, porque entra a especulação imobiliária, com uma ação de reintegração de posse falsa, e toma a terra deles — alerta Sacopã.

Resistência na Justiça

Ele conta que foram necessárias muitas batalhas judiciais para continuar na região. Enfrentou desde discriminações explícitas dos vizinhos, até uma prisão domiciliar de 10 dias, quando fecharam os portões do quilombo e colocaram dois policiais militares na entrada, impedindo que os moradores saíssem de casa. 

O caso ocorreu em 2013, após vizinhos apresentarem um processo que impedia os quilombolas de fazer qualquer manifestação cultural. A proibição foi contestada por Sacopã, que acabou levado para a delegacia diversas vezes : sua atitude foi considerada "desobediência judicial".

— O racista acha que o negro não foi feito para ficar aqui, em uma área nobre. Às vezes eu estou ali embaixo, lavando meu carro ou botando uma graxa no portão, e as pessoas chegam e falam que querem falar com o meu patrão. Você tem que escutar aquilo, saber absorver e se conformar. Mas eu acho que chega a hora de um enfrentamento.

A gente fica feliz com o processo de titulação, mas isso não vai acabar com a perseguição que existe, porque o problema deles é a cor, e nossa cor permanece preta. Então o racismo vai continuar — diz ele, contando como os vizinhos costumam reclamar das manifestações que ocorrem no quilombo e até ir em órgãos públicos para tentar prejudicá-los.

Hoje o quilombo não consegue se manter com as atividades em seu território. Seus integrantes precisam trabalhar fora. Mas isso não os impede de organizarem eventos constantemente, como rodas de samba, e a famosa feijoada feita a lenha, em todo segundo sábado do mês, e que segue um ritual de preparo que já vem desde o tempo dos avós de Sacopã.

Autoidentificação

Luiz Martins Pinto, filho de Sacopã, que tem 53 anos, diz que os moradores sempre foram quilombolas, mas até determinado momento ainda não se identificavam como tal. Quando houve a remoção de favelas na região, na década de 1970, Sacopã iniciou a luta para continuarem no local. Mas foi só a partir da Constituição de 1988, que definiu a existência de comunidades quilombolas, que os moradores do Sacopã começaram a se entender dessa forma:

— Foram diversas as investidas para a gente sair, isso já faz a gente ter essa noção de que somos um quilombo de resistência. Fora isso, havia outras questões culturais. Como minha avó, que era rezadeira e tinha costumes africanos. Nossa tendência à música, que veio da minha avó e passou para o meu pai. O domínio com a terra e os conhecimentos sobre as fases da Lua, que meu avô tinha. 

Todos esses pontos fazem a gente entender essa ligação telúrica com o lugar, enquanto um quilombo. Acho que a gente tem essa ligação com a questão ancestral, embora estejamos no coração do Rio e em um lugar que foi gentrificado. Mas a gente ainda se mantém assim. Meu pai ainda tem a coisa da contação de história, que minha avó e minha tia tinham, que é típico também da África: o saber sendo transmitido oralmente.

*Estagiária sob supervisão de Carla Rocha.


Fonte: O GLOBO

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