Minhas primeiras lembranças como torcedor da seleção brasileira

Minhas primeiras lembranças como torcedor da seleção brasileira

Torcendo para que a atual chegue a um lugar feliz, abro aqui o varandão — ou o quintal — da saudade

Porto Velho, RO
- A última das três casas em que moramos na Avenida Brasília tinha um quintal grande, com pés de mexerica, limão e laranja Bahia, subindo o morro até o muro, que dava para a rua do hospital e era amparado por eucaliptos.

Na parte plana, armamos um campinho, com traves de bambu e redes reaproveitadas das que o Esporte Clube Biquense trocava a cada ano em sua quadra. Ao lado de um dos gols ficava uma goiabeira, que fazia as vezes de beque plantado (porque as raízes cresceram antes de onde desenhamos a linha de fundo) e arquibancada (um dos galhos sustentava até dois espectadores pequenos).

Uma das laterais acabava numa cerca, também de bambu, que dava para os fundos do vizinho, onde morava um pastor alemão que não era fã do barulho que fazíamos. Quando a bola caía lá, um dos moleques mais fortes, normalmente o Erler, ficava provocando o bicho com uma vareta para que outro, normalmente eu, pulasse para buscá-la, pé ante pé.

Foi também o Erler (filho do meu padrinho Nevito, mas longe de ser um craque como ele) que começou a imitar um narrador estrangeiro que gritava “Gol, gol, gol, gol! Brasil! Dirceu!” num clipe da Copa do Mundo de 1978. 

E foi assim que o campinho no quintal se tornou o palco das lembranças inaugurais de minha carreira como torcedor da seleção brasileira (eu me lembro de algumas coisas antes, a bagunça e o foguetório nos jogos em 74, o gol do Rivellino de falta contra a Alemanha Oriental com o Jairzinho se atirando ao chão no meio da barreira para criar o espaço por onde a bola passou, mas essas são mais borradas). 

As imagens da molecada correndo para o campinho depois dos jogos do Brasil são muito vívidas, assim como as do caderno pequeno de espiral no qual desenhei os gols da campanha que imaginei para aquele Mundial, imitando o estilo de Gepp e Maia na revista “Placar”, com bonequinhos e setas compondo as jogadas: só vitórias e apenas um gol sofrido, na final contra a Holanda — de pênalti, e porque a cobrança de Rensenbrink fazia uma curva impossível para Leão pegar.

Claro que não foi assim que aquela Copa terminou na vida real. O Brasil saiu invicto, chamado de “campeão moral” pelo treinador Cláudio Coutinho, mas fez uma campanha irregular, marcada por empates inesperados na primeira fase e por uma eliminação carregada de revolta, após uma goleada suspeita da Argentina sobre o Peru. 

Não sei como me virei para fazer a transição da minha fantasia para esse estado de coisas. Sei que não tenho registro de choro (o primeiro causado por uma seleção só viria quatro anos depois). Talvez tenha simplesmente ido para o campinho tentar imitar o gol de Dirceu na decisão do terceiro lugar contra a Itália — o de Nelinho era impossível; nem no campinho da nossa imaginação existe espaço para uma curva como aquela.

E é claro que não me lembro também do primeiro jogo do novo ciclo ou de quem era o treinador (foi uma goleada de 6 a 0 sobre o Paraguai no Maracanã, ainda sob o comando de Coutinho, mas quem diz isso é uma pesquisa online, e não minha memória). O que fica não é o primeiro passo, é a caminhada. E foi torcendo para que a que começou ontem, no Marrocos, chegue a um lugar feliz que abri aqui o varandão — ou o quintal — da saudade.


Fonte: O GLOBO

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