Interesses divergentes já ameaçam coesão do Ocidente contra a Rússia, apontam analistas

Interesses divergentes já ameaçam coesão do Ocidente contra a Rússia, apontam analistas

Perspectiva de crise global e conflito prolongado enfraquecem simpatia à causa ucraniana

Porto Velho, RO
- Três meses após a invasão da Ucrânia, completados hoje, o que parecia ser a inabalável coesão de países que se uniram prontamente para conter Vladimir Putin dá sinais de exaustão. 

O passar do tempo e a perspectiva de um longo período de recessão global ressaltam divergências que sempre existiram entre as nações, mas ficaram em suspenso por conta do choque inicial da guerra. Interesses não convergentes, que variam segundo a proximidade da zona de conflito e fragilidades econômicas — sobretudo as já causadas pela própria guerra — mostram que a simpatia à causa ucraniana ou antipatia à brutalidade russa podem ter um limite.

O mundo anglófono, representado por Estados Unidos, Reino Unido e Canadá, mantém uma retórica mais virulenta. No final de março, o presidente americano, Joe Biden, chegou a verbalizar que Putin “não pode continuar no poder”. 

Washington e Londres enviam ao campo de batalha mais armamentos do que os europeus — países mais próximos da Rússia e que dependem em boa medida do gás que vem de lá.

Os Estados Unidos ainda querem punir a Moscou bem entrosada com o ex-ocupante da Casa Branca Donald Trump, segundo a especialista Aglaya Snetkov, da Universidade College London. Maior produtor de energia do mundo, graças ao xisto, e maior exportador de gás liquefeito natural (com grandes promessas de remessas para a Europa), os americanos têm interesse em uma Rússia enfraquecida.

Pressão sobre Turquia

Washington deve cobrar dos turcos uma mudança de posição sobre a entrada de Finlândia e Suécia na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), que acabam de embarreirar. Para Snetkov, a Turquia testa o que pode ganhar em troca de americanos e russos nessa queda de braço. 

O presidente Recep Tayyip Erdogan, que mantém boa relação com Putin, vinha defendendo solução negociada para o fim o conflito.

Parte da Europa Ocidental teme que a decisão de encurralar o líder russo seja prejudicial à segurança e à economia do continente. Isso ficou claro pelo discurso recente do francês Emmanuel Macron, que acaba de ser reeleito e sabe que a situação econômica europeia será pior quanto mais longa for a guerra. 

O mesmo acontece com Itália e Espanha, países que têm se mantido mais abaixo do radar. Macron, porém, está longe de ser unanimidade.

— Ele precisa agradar ao público doméstico. Entre outros problemas, seu ego é o que mais prejudica a coesão do Ocidente. Tenta sobressair como a voz da razão. A tragédia é que não adaptou sua visão à realidade — disse Keir Giles, especialista em segurança do programa de Rússia e Eurásia do centro de estudos britânico Chatham House.

Em outro espectro, no Leste Europeu, Polônia e países bálticos mantêm apoio inequívoco à estratégia de conter as ambições de Putin. Vítimas da geografia, essas nações têm relações históricas problemáticas com os russos.

— Os poloneses sabem que Putin quer restaurar a Rússia czarista e que seu país era parte do império — destaca Gilles.

Aliás, a Polônia sozinha recebeu mais da metade dos 6,4 milhões de refugiados ucranianos. Em sua maioria mulheres e crianças, essas pessoas serão fonte de pressão crescente sobre gastos com educação e saúde quanto mais longo for o conflito. Isso desagradará aos contribuintes, já afetados pela crise econômica que desenha no horizonte.

Dependente em 50% do gás russo, a Alemanha aumentou o orçamento militar pela primeira vez em anos e está enviando armas à Ucrânia, rompendo uma política histórica do pós-Segunda Guerra de não exportar armas para zonas de conflito. 

Mas nem por isso adotou o tom bélico de outras nações. O novo governo de Olaf Scholz, que anunciou corte gradual das importações de gás, sabe que, internamente, a opinião pública está rachada. O próximo inverno está logo ali, e a população, que também enfrenta a alta de preços de energia e alimentos, vai precisar de aquecimento em casa. 

Além disso, desembolsos europeus para ajudar a Ucrânia ou aplicar no setor militar recaem sobretudo sobre o Orçamento público alemão, maior contribuinte da UE.

Inflação pesa

Ameaças à coesão Ocidental podem vir até dos mais fervorosos defensores do confronto. Para Giles, da Chatham House, o cidadão britânico vai entender que o custo da guerra não é só de enviar armas para a Ucrânia, mas tem efeitos direto no bolso. 

No Reino Unido, a grande insatisfação da opinião pública por questões econômicas, com um governo desestabilizado por sucessivos escândalos políticos, que não consegue mostrar benefícios do Brexit, está por trás da narrativa inflamada que demoniza Rússia e prega pressão máxima.

Existe no país uma falsa sensação de menor exposição à crise. Mas, embora dependa menos do gás russo e esteja relativamente mais longe da Ucrânia, o Reino Unido não está imune à disparada dos preços de energia e alimentos. 

Não por acaso, registra a pior inflação dos últimos 40 anos: 9% ao ano até abril. A questão dos refugiados também já afeta a agenda do país que deixou a Europa abraçado a um discurso anti-imigração.

Tudo isso pode enfraquecer a resposta a Moscou, pôr em risco — ou até impossibilitar — o processo de reconstrução da Ucrânia e jogar nuvens ainda mais sombrias sobre o futuro da economia mundial.

— A dor econômica do conflito, sem falar na humanitária e militar, causa uma desestabilização que vem por cima da provocada pela pandemia e vai ser sentida de maneiras distintas pelos países. Se russos fecharem torneira do gás, como vai ser? Já há calibragens diferentes no antagonismo desses países hoje. 

Há certa coesão, que vai ser posta à prova pelo tempo, que não está a favor dessas nações. Elas acham que os russos vão capitular, mas a Rússia não tem sistema de mudança de regime. Há economias mais frágeis na UE. Essa coesão vai até onde? — pondera um diplomata europeu.

Neutralidade inviabilizada

Professor de Segurança Internacional da Universidade de Birmingham, Stephan Wolff fala que as alianças daqui para frente devem consolidar a divisão Leste-Oeste, com pouco espaço para as nações que preferem a política de limitado ou nenhum alinhamento.

— A neutralidade como estratégia de segurança para os países entre a Rússia e o Ocidente já não é mais viável, como indicam o desejo de Finlândia e Suécia de entrar na Otan. Isso pode ter consequências para países da Ásia Central, como o Uzbequistão e o Turcomenistão, que mantêm postura neutra — explica.

Para Snetkov, é natural que, passado o choque inicial, os países se voltem para seus próprios interesses. Por esta razão, defende mais foco econômico na Ucrânia.

— As consequências para a Ucrânia, hoje, já são desastrosas. Não pode virar um país disfuncional — explica Snetkov, para quem europeus e americanos precisam se envolver mais agora que seus eleitores ainda têm interesse pela Ucrânia.


Fonte: O GLOBO

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