Indenização bilionária paga por escravos libertos a ex-senhores está na origem da miséria do Haiti

Indenização bilionária paga por escravos libertos a ex-senhores está na origem da miséria do Haiti

Acordos desonestos, dívidas gigantescas e corrupção generalizada resultaram em déficits orçamentários e problemas sociais que moldaram o país caribenho

Porto Velho, RO - O café tem sido a base da vida aqui por quase três séculos, desde que os escravizados cortaram as primeiras plantações de café francês nas encostas das montanhas. Naquela época, não era o Haiti, mas Saint-Domingue — o maior fornecedor de café e açúcar consumido nas cozinhas e cafés parisienses em Hamburgo, na Alemanha. A colônia tornou muitas famílias francesas fabulosamente ricas. Mas, dizem muitos historiadores, foi um período brutal.

Os ancestrais de Adrienne Present, que vive em Dondon, no Haiti, fizeram história participando da primeira revolução escrava bem-sucedida do mundo moderno, em 1791, e estabelecendo uma nação independente em 1804. 

No entanto, por gerações após a independência, os haitianos foram forçados a pagar os descendentes de seus antigos senhores de escravos, incluindo o genro do imperador russo Nicolau I; o último chanceler imperial da Alemanha; a Imperatriz do Brasil; e Gaston de Galliffet, o general francês conhecido como o “carniceiro da Comuna” por esmagar uma insurreição em Paris em 1871.

Os encargos continuaram até o século XX. A riqueza que os ancestrais de Present tiraram do chão criou lucros incríveis para um banco francês que ajudou a financiar a Torre Eiffel, o Crédit Industriel et Commercial, e para seus investidores. Eles controlaram o tesouro do Haiti por décadas, e o banco acabou se tornando parte de um dos maiores conglomerados financeiros da Europa.

As riquezas do Haiti também atraíram Wall Street, gerando grandes margens para a instituição que acabou se tornando o Citigroup. Afastou os franceses e ajudou a estimular a invasão do Haiti pelos EUA — uma das mais longas ocupações militares da história dos EUA.

No entanto, a maioria dos cafeicultores da área de Adrienne Present, no Haiti, nunca teve água encanada ou fossa séptica. Eles têm casinhas toscas e cozinham seu diri ak pwa —arroz e feijão —sobre fogueiras. Eles entregam suas colheitas de café nas costas de cavalos magros com selas de folhas de palmeira e rédeas de corda ou içam as cargas na cabeça para carregá-las a pé por quilômetros em estradas de terra.

Muitos deles, como o marido de Present, Jean Pierrelus Valcin, não sabem ler, nunca “sentaram em um banco de escola”, como diz o ditado crioulo haitiano. Todos os seis filhos do casal começaram a estudar, mas nenhum terminou, dadas as altas taxas cobradas no Haiti, onde a grande maioria da educação é privada porque o país nunca construiu mais do que um pequeno sistema de ensino público.

— Nossos filhos têm que deixar o país para encontrar emprego — disse Valcin, que está perdendo a visão, mas não tem dinheiro para ir a um especialista.

Adrienne Present faz café em casa: sem eletricidade nem água encanada — Foto: FEDERICO RIOS/NYT

O peso da corrupção

Violência. Tragédia. Fome. Em desenvolvimento. Esses provérbios se apegaram ao Haiti por mais de um século. Sequestros. Surtos. Terremotos. O presidente assassinado — em seu próprio quarto.

Como é possível, muitos perguntam, que o Haiti compartilhe uma ilha com a República Dominicana, com seu sistema de metrô subterrâneo, cobertura de saúde, escolas públicas, resorts fervilhantes e impressionantes períodos de crescimento econômico?

A corrupção é a explicação usual, e não sem razão: os líderes do Haiti historicamente saquearam o país para seu próprio ganho; os políticos falaram abertamente no rádio sobre aceitar subornos; e os oligarcas ocupam monopólios lucrativos, pagando poucos impostos. A Transparência Internacional a classifica entre as nações mais corruptas do mundo.

Mas outra história raramente é ensinada ou reconhecida: as primeiras pessoas no mundo moderno a se libertarem da escravidão e criarem sua própria nação foram forçadas a pagar por sua liberdade — e em dinheiro.

Nenhum país poderia vir em defesa do Haiti. As potências mundiais o congelaram, recusando-se a reconhecer oficialmente sua independência. Os políticos dos EUA, em particular, não queriam que as pessoas escravizadas em seu próprio país fossem inspiradas pela autolibertação do Haiti e se insurgissem.

Assim, o presidente do Haiti, ansioso pelo comércio e pela segurança do reconhecimento internacional, cedeu às exigências da França. Com isso, o país abriu outro precedente: tornou-se o primeiro e único do mundo onde os descendentes de escravizados pagaram indenizações aos descendentes de seus senhores —por gerações.

É a chamada de “dívida da independência”. Mas esse é um equívoco. Foi um resgate.

A dívida dupla


Moradores fogem de suas casas em meio a batalhas de gangues em Porto Príncipe — Foto: Ralph Tedy Erol/Reuters

A quantia estava muito além dos escassos recursos do Haiti. Mesmo a primeira parcela foi cerca de seis vezes a receita do governo naquele ano, com base em recibos oficiais documentados pelo historiador haitiano Beaubrun Ardouin, no século XIX.

Mas essa era parte do plano. O rei francês deu ao barão uma segunda missão: garantir que a ex-colônia pegasse um empréstimo de jovens bancos franceses para fazer os pagamentos.

Essa estratégia ficou conhecida como “dívida dupla” do Haiti —o resgate e o empréstimo para pagá-lo — resultando numa carga impressionante que impulsionou o incipiente sistema bancário internacional parisiense e ajudou a consolidar o caminho do Haiti para a pobreza e o subdesenvolvimento. 

De acordo com os registros de Ardouin, somente as comissões dos banqueiros excederam as receitas totais do governo haitiano naquele ano.

E isso foi apenas o começo. A dupla dívida ajudou o Haiti a entrar em um ciclo de dívidas que prejudicou o país por mais de cem anos, drenando grande parte de sua receita e reduzindo sua capacidade de construir as instituições e infraestrutura essenciais de uma nação independente. 

Gerações depois que os escravizados criaram a primeira nação negra livre nas Américas, seus filhos foram forçados a trabalhar, às vezes por pouco ou até mesmo nenhum pagamento, em benefício de outros — primeiro os franceses, depois os americanos, depois seus próprios ditadores.

— Os escravos lutaram pela nossa independência. Para fazê-los pagar por essa independência novamente, o jeito foi criar outra forma de escravidão — disse Cedieu Joseph em seu jardim em Dondon, a cidade no Norte do Haiti onde Present vive.

Joseph chama a chamada dívida de independência de um chicote moderno, usado pela França para punir sua ex-colônia por querer e conquistar sua liberdade.

Desde então, a dupla dívida, em grande parte, desapareceu na história. A França tem repetidamente subestimado, distorcido ou enterrado o assunto. Apenas alguns estudiosos o examinaram profundamente. 

Nenhuma contabilidade detalhada de quanto os haitianos realmente pagaram foi feita, dizem os historiadores. Mesmo no Haiti, os debates sobre seus efeitos na economia, no desenvolvimento e no destino político do país continuam até hoje.

O New York Times passou meses vasculhando milhares de páginas de documentos originais do governo, alguns deles com séculos de idade e raramente, ou nunca, revisados ​​por historiadores. O jornal vasculhou bibliotecas e arquivos no Haiti, França e EUA para estudar a dupla dívida e seu efeito no Haiti, financeira e politicamente.

Perdas de US$ 115 bilhões

O NYT, pela primeira vez, segundo os principais historiadores, tabulou quanto dinheiro os haitianos pagaram às famílias de seus antigos senhores e aos bancos e investidores franceses que detinham aquele primeiro empréstimo ao Haiti, não apenas em pagamentos oficiais do governo sobre a dívida dupla, mas também em juros e multas por atraso, ano após ano, por décadas.

O jornal descobriu que os haitianos pagaram cerca de US$ 560 milhões em dólares de hoje. Mas isso não retrata nem de perto a verdadeira perda. Se esse dinheiro tivesse simplesmente permanecido na economia haitiana e crescido no ritmo real do país nos últimos dois séculos — em vez de ser enviado para a França, sem que qualquer bem ou serviço fosse fornecido em troca — teria acrescentado impressionantes US$ 21 bilhões ao Haiti ao longo do tempo, mesmo respondendo por sua notória corrupção e desperdício.

Se o dinheiro não tivesse sido entregue aos ex-proprietários de escravos do Haiti, não teria permanecido nas mãos dos cafeicultores, lavadeiras, pedreiros e outros que o ganhavam. Ele teria sido gasto — em lojas, em mensalidades escolares ou em contas médicas. Teria ajudado as empresas a crescer ou semeado novas. Parte do dinheiro teria ido para o governo, possivelmente até para construir pontes, esgotos e tubulações de água.

Esses gastos compensam com o tempo, impulsionando o crescimento econômico de um país. É impossível saber com certeza como seria a economia do Haiti. Mas vários estudiosos disseram que, sem o peso da dupla dívida, o país poderia ter crescido na mesma proporção que seus vizinhos na América Latina.

— Não há razão para que um Haiti livre do fardo francês não pudesse ter crescido —disse o historiador financeiro Victor Bulmer-Thomas, que estuda as economias da região.

André A. Hofman, especialista em desenvolvimento econômico da América Latina, também chamou esse cenário de “muito razoável”.

Nesse caso, a perda para o Haiti é surpreendente: cerca de US$ 115 bilhões ao longo do tempo, ou oito vezes o tamanho de sua economia em 2020.

Dito de outra forma, se o Haiti não tivesse sido forçado a pagar seus ex-senhores de escravos, uma equipe de estudiosos internacionais estimou recentemente, a renda per capita do país em 2018 poderia ter sido quase seis vezes maior — aproximadamente o mesmo que em seu vizinho, a República Dominicana.

Dívida odiosa

Esses estudiosos chamaram o fardo imposto ao Haiti de “talvez a dívida soberana mais odiosa da história”. A dívida dupla ajudou a desencadear uma cascata de privações, déficits orçamentários e empréstimos estrangeiros onerosos que moldaram o país no século XX e além.

Embora o governo do Haiti tenha feito os últimos pagamentos relacionados a seus ex-proprietários de escravos em 1888, a dívida estava longe de ser liquidada: para terminar de pagá-la, o país tomou emprestado de outros credores estrangeiros que, em aliança com alguns funcionários haitianos egoístas e indiferentes aos interesses de seu povo, reivindicou uma parte significativa da renda da nação nas décadas seguintes.

Com seus recursos esgotados depois de décadas pagando à França, o Haiti fez ainda mais empréstimos depois disso. Em 1911, US$ 2,53 de cada US$ 3 arrecadados pelo Haiti com os impostos sobre o café, sua fonte de receita mais importante, foram para o pagamento de dívidas mantidas por investidores franceses, segundo Gusti-Klara Gaillard e Alain Turnier, historiadores haitianos cujos relatos são consistentes com os registros encontrados nos arquivos diplomáticos nos subúrbios de Paris.

Casos assim deixaram muito pouco para administrar um país, e muito menos para construir um.

Em alguns anos da ocupação americana, que começou em 1915, a maior parte do orçamento do Haiti foi para pagar os salários e despesas das autoridades americanas que controlavam suas finanças, em vez de fornecer assistência médica a toda a nação de cerca de dois milhões de pessoas.

Mesmo depois que os americanos abandonaram o controle fiscal no final da década de 1940, os agricultores haitianos viviam com uma dieta que “muitas vezes estava próxima do nível de fome”, relataram funcionários das Nações Unidas. Apenas uma em cada seis crianças foi para a escola.

Pouco dessa história é reconhecida pela França. As indenizações que os haitianos foram forçados a pagar a seus antigos "senhores" por gerações não são tratadas nas escolas francesas, dizem os pesquisadores. E quando um presidente haitiano começou a levantar o assunto em voz alta, o governo francês zombou e tentou calá-lo.

A queda de Aristide

Em 2003, Jean-Bertrand Aristide, ex-padre que se tornou o primeiro presidente democraticamente eleito após décadas de ditadura, lançou uma campanha exigindo que a França devolvesse o dinheiro que havia extraído. Para isso, contava com anúncios de televisão, faixas de rua e uma equipe jurídica reunindo os elementos de um processo internacional.

O governo francês respondeu reunindo uma comissão pública para estudar as relações entre os dois países, mas discretamente instruiu-a a “não dizer uma palavra a favor da restituição”, disse Thierry Burkard, o embaixador francês no Haiti na época, em entrevista recente ao Times.

A comissão rejeitou as alegações de Aristide como estratagemas de demagogo e retratou a dívida da independência como um “tratado” entre o Haiti e a França.

Um mês depois, o governo francês ajudou a remover Aristide do poder, dizendo que estava tentando impedir que o Haiti, que estava agitado, se transformasse em uma guerra civil. Mas embora as autoridades francesas tenham dito há muito tempo que o pedido de restituição não foi o motivo da expulsão de Aristide, Burkard reconheceu que "provavelmente também era um pouco sobre isso".

— Isso abriria um precedente (para outros países) — disse.

Centenas de haitianos fazem fila em Ciudad Juarez, no México, na esperança de conseguir visto para entrar nos Estados Unidos — Foto: Jose Luis Gonzalez/Reuters

Os pagamentos do Haiti a ex-colonos deveriam ir apenas para proprietários individuais, não para o governo francês. 

No entanto, o estado acabou ficando com uma parte. O Times desenterrou vários documentos do governo do início de 1900 revelando que dois milhões de francos dos descendentes do povo escravizado do Haiti, ou US$ 8,5 milhões na moeda atual, desembarcaram nos cofres do Estado francês. O Tesouro da França se recusou a comentar o caso, dizendo que seus arquivos datavam apenas de 1919.

Algumas das famílias que receberam pagamentos ao longo de décadas continuam sendo a realeza europeia e a aristocracia francesa. 

Seus descendentes incluem Maximilian Margrave de Baden, primo em primeiro grau do príncipe Charles; o empresário francês Ernest-Antoine Seillière de Laborde, que já dirigiu a poderosa associação de grandes empresas do país; e Michel de Ligne, um príncipe belga cujos ancestrais eram próximos de Catarina, a Grande, e construiu um castelo conhecido como “Versalhes Belga”, onde centenas de crianças judias foram escondidas durante o Holocausto.

O New York Times rastreou e conversou com mais de 30 descendentes de famílias que receberam pagamentos da dívida de independência do Haiti. A maioria disse que nunca tinha ouvido falar do assunto.

— Esta é parte da história da minha família que eu nunca soube — disse Nicolaus Herzog von Leuchtenberg, duque de Leuchtenberg e descendente de sexta geração de Joséphine de Beauharnais, a primeira esposa de Napoleão, em entrevista por telefone da Alemanha.

A dívida não foi paga por todos os haitianos igualmente. A pequena elite do país, que hoje vive em mansões fechadas e viaja regularmente para férias em Paris e Miami, permaneceu praticamente intocada. Foram os pobres que pagaram — e continuam pagando, muitos argumentam, porque o país nunca teve escolas suficientes, água potável, eletricidade e outros serviços básicos.


Fonte: O GLOBO

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