Ucrânia ganha uma improvável fonte de financiamento na guerra: memes e propaganda na internet

Ucrânia ganha uma improvável fonte de financiamento na guerra: memes e propaganda na internet

A imagem pública da Ucrânia, agora impulsionada por mercadorias, é de um país corajoso que, contra todas as probabilidades, está virando a maré contra a Rússia

Porto Velho, RO
- Christian Borys estava em casa em Toronto, em fevereiro, tentando encontrar uma maneira de ajudar os ucranianos ameaçados pela guerra quando decidiu imprimir alguns adesivos de um meme da internet: a Virgem Maria içando um míssil antitanque.

Borys, que trabalhou para a plataforma de comércio eletrônico Shopify antes de se dedicar ao jornalismo, contou que criou em meia hora um site, na esperança de arrecadar dinheiro para enviar a uma instituição de caridade para órfãos ucranianos. Naquela noite, ele fez 88 dólares canadenses (R$ 325) em vendas.

Quando colocou as camisetas no site no final de fevereiro, a ameaça de guerra se transformou em uma invasão em grande escala, e as vendas aumentaram para 170 mil dólares canadenses (R$ 629 mil) por dia — a maioria vindo dos Estados Unidos.

— A internet fala por memes e isso se tornou uma sensação louca e viral — disse. — Acho que é porque as pessoas estavam procurando um símbolo de apoio, uma maneira de apoiar a Ucrânia, porque todos viam a injustiça.

Imagens como tratores ucranianos rebocando um tanque e helicóptero russos desativados, embora não verificadas, não apenas ajudaram a combater a desinformação russa, mas também a apoiar instituições de caridade ucranianas — e até mesmo os militares ucranianos.

As vendas de mercadorias nos Estados Unidos e em outros lugares do mundo são surpreendentes, já que muitas pessoas que compram as camisetas, adesivos, canecas e barras de chocolate nunca teriam pensado no país do Leste Europeu antes do conflito.

O site de Borys, Saint Javelin, arrecadou até agora quase US$ 1,5 milhão (R$ 7 milhões) para ajudar a instituição de caridade ucraniana Help Us Help, que se ramificou em vários serviços, e para fornecer equipamentos de proteção para jornalistas que cobrem a guerra.

— Acho que é sem precedentes — disse Peter Dickinson, editor do serviço UkraineAlert no Atlantic Council, falando sobre o suporte criado pela internet. — Temos que ter em mente que isso também é uma coisa tecnológica, que estamos no ponto em que as ferramentas estão disponíveis.

Quando a Rússia invadiu e anexou a Península da Crimeia em 2014, a invasão recebeu muito menos atenção no Ocidente. Desta vez, o aviso do presidente americano, Joe Biden, em meados de fevereiro de que a Rússia estava a dias de invadir a Ucrânia trouxe milhares de jornalistas, e as notícias dominaram as manchetes.

— A Rússia teve muito sucesso no passado em divulgar todo tipo de informação sobre a Ucrânia porque ninguém sabia muito sobre o país — disse Dickinson. — Foi como uma lousa em branco.

Isso mudou rapidamente a partir de fevereiro, quando a Ucrânia foi vista como o azarão contra um invasor muito mais poderoso. Os esforços de crowdfunding surgiram — levantando milhões de dólares para os militares ucranianos, inclusive por meio de criptomoedas — enquanto os aliados europeus a princípio não enviariam mais armas ao país para evitar inflamar os combates.

Agora, a esmagadora imagem pública da Ucrânia, impulsionada por memes e mercadorias, é de um país corajoso que, contra todas as probabilidades, está virando a maré da guerra.

— Trata-se do espírito da nossa luta e de nossa força — disse Taras Maselko, diretor de marketing da empresa de roupas Aviatsiya Halychyny, que vende camisetas em uma categoria chamada “Lute como ucranianos”.

Maselko disse que pedidos vieram seis vezes mais de fora do país do que de dentro da Ucrânia.

— Você imagina que se estiver vestindo uma camiseta, se estiver lendo algo nas redes sociais, isso o levará à realidade do que está acontecendo na Ucrânia — disse ele.

A mais vendida da marca de roupas é uma camiseta com a agora famosa resposta profana que os guardas de fronteira ucranianos na Ilha da Cobra, um posto avançado no Mar Negro, deram a um navio de guerra russo que ordenou que ele e sua unidade se rendessem.

A resposta é um apelo, com todos os seus palavrões, colocado em outdoors na Ucrânia e cantado por crianças e seus pais em protestos fora do país.

Esta semana, o serviço postal da Ucrânia revelou um selo representando um operador das forças especiais da Marinha ucraniana com o dedo médio levantado para o navio de guerra russo Moskva. Eles planejam lançar um site para vender os selos, xícaras de café e outras mercadorias.

O Moskva afundou na últim quinta-feira depois que a Ucrânia disparou mísseis Netuno contra ele, segundo autoridades dos EUA. O governo russo negou que tenha sido atacado e disse que foi desativado quando um incêndio começou.

O chefe dos correios ucranianos chamou o selo de “um símbolo de coragem e espírito indomável do povo ucraniano na luta contra a Rússia”. O correio está imprimindo um milhão de selos e vendendo-os pelo equivalente a menos de US$ 1 cada (R$ 4,6), disse seu diretor, Igor Smelyansky.

Segundo ele, algumas pessoas que revendem os selos por muito mais se comprometeram a doar os lucros para o Exército ucraniano. Mas Smelyansky, que é ucraniano-americano, disse que a oportunidade de desmoralizar a Rússia não tem preço.

— Como serviço postal, ficamos sempre felizes quando o destinatário recebe a mensagem.
Humor como resposta

O humor em meio à adversidade é profundo na cultura ucraniana. Antes de ser eleito presidente há três anos, o presidente Volodymyr Zelensky era um comediante. Uma famosa pintura russa retrata os cossacos zaporojianos, no que hoje é a Ucrânia, rindo ruidosamente enquanto esboçam uma carta cheia de palavrões ao sultão do Império Otomano do século XVII, que exigia que eles se submetessem a ele.

No atual período de guerra, as lojas da cidade de Lviv, no Oeste da Ucrânia, vendem barras de chocolate com imagens de Zelensky. Outro tem o conselheiro do presidente, Oleksiy Arestovych, retratado como um personagem de seriado de televisão dizendo: “Tudo ficará bem”.

Aviatsiya Hallychyny, uma empresa de roupas, transferiu sua fábrica do Leste da Ucrânia para Lviv após a invasão. Os lucros da linha de camisetas estão sendo enviados para a Força Aérea Ucraniana, com cerca de US$ 70 mil (R$ 327 mil) arrecadados até agora, segundo Maselko.

Há três semanas, Borys, canadense de origem polonesa-ucraniana, ampliou o Saint Javelin, onde tabalhava de maneira totalmente voluntária, para uma equipe de quatro pessoas em tempo integral para atender à demanda.

Seu site se ramificou da Virgem Maria para outros santos: São Carl Gustaf usa uma máscara de gás, enquanto “Santa Olha, a Rainha Guerreira de Kiev” usa uma coroa e iça uma bazuca sobre os ombros.

— As pessoas no Instagram exigem que façamos as coisas, basicamente — disse Borys. — Recebemos mensagens de pessoas na Espanha que dizem: 'Ei, acabamos de enviar o C-90', um lançador de granadas lançado pelo ombro; ou 'Ei, queremos um santo para a Espanha'; ou qualque santo específico para esse tipo de sistema.

A Virgem Maria, vestida com vestes azuis e douradas e segurando um Javelin, é uma imagem adaptada de uma pintura do artista americano Chris Shaw. Shaw baseou essa pintura em um trabalho anterior em 2012 com a Madonna segurando um rifle Kalashnikov.

Borys reconhece que algumas pessoas podem achar a imagem uma blasfêmia.

— As pessoas definitivamente ficam ofendidas, mas a grande maioria das pessoas vê o que isso realmente significa — contou. — O simbolismo religioso tem sido usado na guerra por centenas de anos. Dizer que é blasfêmia é não entender a realidade da guerra e como as pessoas procuram símbolos de apoio.


Fonte: O GLOBO

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