Mesmo que Macron ainda seja favorito, a direita será a grande vitoriosa da campanha à Presidência na França

Mesmo que Macron ainda seja favorito, a direita será a grande vitoriosa da campanha à Presidência na França

Domínio das ideias conservadoras durante a corrida presidencial mostra que anos de guerras culturais travadas por líderes direitistas na TV e nas mídias sociais surtiram efeito

Porto Velho, RO — Faltando poucos dias para o primeiro turno das eleições presidenciais da França, dia 10 de abril, o presidente Emmanuel Macron ainda é o favorito para ganhar um segundo mandato. Mas, mesmo que ele tenha sucesso, e antes que qualquer voto seja depositado nas urnas, outro vencedor claro já emergiu da campanha: a direita francesa.

Apesar de uma ascensão tardia de Jean-Luc Mélenchon, o principal candidato de esquerda, praticamente toda a campanha foi travada pela direita e pela extrema direita. Seus candidatos dominam as pesquisas, e seus temas e pontos de discussão — questões como identidade nacional, imigração e o Islã — dominaram o debate político.

O próprio Macron girou para a direita de forma tão consistente para enfrentar a disputa, que agora discute-se até se ele deve ser considerado um presidente de centro-direita, embora tenha saído de um governo dirigido pelos agora moribundos socialistas, em 2017.

Nessa corrida acirrada, a candidata que ele provavelmente enfrentará no segundo turno, duas semanas após a votação inicial de domingo, é Marine Le Pen, líder de extrema-direita. Será sua segunda participação consecutiva no turno final da eleição presidencial, consolidando seu lugar no establishment político.

— O grande movimento para a direita está concretizado — disse Gaël Brustier, analista político e ex-assessor de políticos de esquerda. — Não vai partir para a outra direção por 20 anos.

Le Pen e seu partido, o Reagrupamento Nacional, por décadas suavizaram o terreno para o crescimento da direita. Mas a recente ascensão política da direita segue muitos anos em que os conservadores travaram com sucesso uma batalha cultural — muito inspirados pela direita americana e muitas vezes adotando seus códigos e estratégias para atrair um público mais jovem.

Hoje, a direita francesa rompeu as barreiras sociais e é representada por sua própria versão de um canal de notícias de televisão no estilo Fox, CNews, uma rede em expansão de think tanks e várias plataformas de mídia social com seguidores substanciais e cada vez mais jovens.

Essas coisas “não existiam na França ou estavam em estágio embrionário” há apenas alguns anos, diz François de Voyer, 38, apresentador e financiador do Livre Noir, um canal do YouTube com um ano de existência focado em políticos de direita e extrema direita.

— Dissemos a nós mesmos: “Vamos fazer como o CPAC nos Estados Unidos” — conta De Voyer, referindo-se à Conferência de Ação Política Conservadora, o encontro anual da ala direita da política americana.

E assim ele fez.

Zemmour

Em 2019, De Voyer coorganizou “A convenção da direita”, conferência de um dia que contou com figuras importantes da direita e da extrema direita. Constituiu uma plataforma de lançamento política para Éric Zemmour, comentarista de TV e autor de best-sellers.

Mais do que qualquer outro candidato presidencial, Zemmour incorporou a batalha cultural da direita na campanha.

Em seus best-sellers e em suas aparições diárias na CNews, por mais de uma década Zemmour se tornou um líder do novo ecossistema de mídia de direita que pintou a França ameaçada por imigrantes muçulmanos e seus descendentes, bem como por pela importação de ideias multiculturais dos EUA.

Embora ele agora tenha recuado nas pesquisas, para cerca de 10 % de apoio, a ascensão meteórica de Zemmour no ano passado chamou a atenção da França e garantiu que a campanha presidencial seria travada quase exclusivamente no território da direita, já que ele ampliou com sucesso os limites do que era politicamente aceitável na França.

Zemmour trouxe para o mainstream uma teoria da conspiração racista de que as populações cristãs brancas estão sendo intencionalmente substituídas por imigrantes não-brancos, diz Raphaël Llorca, especialista em comunicação francês e membro do instituto de pesquisa Fondation Jean-Jaurès.

A penetração no mainstream dessa teoria — a chamada “grande substituição” — é o resultado de um esforço de uma década pela direita.

Thibaut Monnier, ex-conselheiro do partido de Le Pen que então se juntou ao movimento de Zemmour, disse que, em meados da década de 2010, conservadores como ele estabeleceram para si um projeto "metapolítico" de criar novas instituições políticas e sua própria mídia.

Em 2018, junto com Marion Maréchal, Monnier cofundou em Lyon uma instituição política conservadora chamada Instituto de Ciências Sociais, Econômicas e Políticas (ou Issep). A escola é uma alternativa ao que ele descreve como estabelecimentos de ensino superior dominados pela esquerda.

Mas, ao mesmo tempo em que abria caminho para o estabelecimento educacional, a extrema direita também teve sucesso em uma campanha paralela para divulgar suas ideias nas mídias sociais para parecer atraentemente transgressora.

O domínio das mídias sociais e códigos da cultura pop tem sido central para a batalha cultural de Zemmour, disse Llorca.

O candidato de extrema direita é muito ativo em redes como TikTok e Instagram, onde publica diariamente mensagens e vídeos voltados para um público mais jovem. Seu vídeo de lançamento de campanha no YouTube, repleto de referências culturais, atraiu milhões de espectadores.

Llorca disse que Zemmour havia travado com sucesso uma "batalha cool" destinada a "minimizar o conteúdo radical" de suas ideias sem nunca mudar sua substância. Ele foi ajudado por uma rede de internautas que neutralizam com humor a violência de suas ideias extremistas. 

No Facebook e no Instagram, contas seguidas por dezenas de milhares de pessoas frequentemente postam memes alegres sobre Zemmour.

Zemmour recebeu apoio de influenciadores de extrema direita do YouTube zombando de tudo, desde o feminismo a veganismo e sindicatos. Um desses influenciadores, Papacito, cujos vídeos às vezes atingem um milhão de visualizações, endossou Zemmour recentemente.

— Nosso objetivo é realmente fazer um Canal+ contracultural — disse ele à revista Valeurs Actuelles, referindo-se ao canal de TV de entretenimento que dominou a cena cultural progressista nas décadas de 1980 e 1990. — Um que seja tão divertido, mas que carregue ideias patrióticas e mais reacionárias.

Samuel Lafont, chefe da equipe digital de Zemmour, disse que cerca de 1.500 pessoas estavam trabalhando para promover discussões sobre Zemmour nas redes sociais e criar novos visuais acompanhando suas aparições na mídia.

Lafont reconheceu que várias “células” independentes foram criadas para travar a luta na Wikipedia, que ele chamou de “uma importante batalha cultural”.

A equipe de Le Pen muitas vezes se gabou de já ter vencido a batalha de ideias, apontando como o governo até adotou parte de sua linguagem, incluindo o uso do termo "ensauvagement", sugerindo que a nação está se tornando selvagem.

O ‘wokisme’

Mas o sucesso mais impressionante da direita pode ser o uso crescente no debate público de “wokisme”, termo desconhecido para a maioria dos franceses há alguns meses. Embora seu significado nunca tenha sido claro, “wokisme” tornou-se um termo genérico usado pelos conservadores para enfraquecer as demandas por justiça social.

Dados do Google mostram que o interesse pelo “wokisme” surgiu apenas em setembro, quando a mídia começou a se concentrar nas eleições presidenciais. Ele atingiu o pico em novembro, alimentado por controvérsias em torno das chamadas ideias acordadas, como o uso de pronomes não binários.

Nicolas Vanderbiest, um especialista em comunicação que estudou a aparência da noção on-line, estimou que 15% das trocas que provocaram ampla controvérsia nas mídias sociais francesas no ano passado estavam relacionadas ao “wokisme”.

“Wokisme” se espalhou graças a publicações conservadoras. O Le Figaro, jornal de segunda maior circulação nacional, usou o termo acordou 417 vezes em seus artigos no ano passado. Isso foi cerca de 12 vezes mais do que o Le Monde, um diário de centro-esquerda com o maior número de leitores na França.

Esse movimento tornou-se tão poderoso que o ministro da educação nacional de Macron, Jean-Michel Blanquer, lançou um think tank em outubro passado para combater o “wokisme”, dizendo ao Le Monde que “a França e sua juventude devem escapar disso”.

A esquerda francesa “se deixou intimidar” por palavras como “wokisme”, tornando quase impossível se engajar em discussões francas sobre racismo e outros problemas sociais durante a corrida presidencial, disse Sandrine Rousseau, economista, ecofeminista e líder dos Verdes franceses.

A direita francesa conseguiu vencer as guerras culturais, em grande parte porque a esquerda não ofereceu alternativa, disse Rousseau.

— Nós, da esquerda, recuamos diante dos ataques da direita — afirma Rousseau. — À medida que eles avançavam gradualmente, tínhamos medo de liderar essa luta.

Brustier, o analista, disse que as organizações de esquerda “não trabalham” para produzir novas ideias. Alguns anos atrás, afirma, tentou sem sucesso lançar uma escola para treinar ativistas de esquerda:

— Isso deixou todo mundo incomodado.


Fonte: O GLOBO

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