Sanções ocidentais levam russos a reviver grandes crises dos anos 1990 e 1970

Sanções ocidentais levam russos a reviver grandes crises dos anos 1990 e 1970

Especialistas ponderam que vai levar tempo para medir impacto das punições tomadas contra Moscou após a invasão à Ucrânia

Porto Velho, RO — A servidora aposentada Lyubova Alexeyva, de 80 anos, tem batido ponto todos os dias no mercadinho e na farmácia do outro lado da rua, nos arredores de Moscou, onde mora. 

Com o dinheiro da pensão contado, quer garantir que a disparada da inflação não a impedirá de ter os mantimentos de sempre na despensa, nem os remédios de uso contínuo de que não pode abrir mão. 

Também voltou a cultivar o hábito de guardar seus rublos debaixo do colchão, mesmo sabendo que a moeda perdeu valor em relação ao dólar.


Ela e outros milhões de russos que temiam uma deterioração da situação econômica antes mesmo da guerra de Vladimir Putin na Ucrânia têm a sensação de que já viram esse filme. Sob mais de 6 mil sanções distintas, os indicadores da economia russa devem voltar pelo menos 20 anos no tempo.

Com a guerra em curso e a ameaça de novas restrições — desta vez sobre as exportações de petróleo e gás, uma das principais fontes de receita do país— ainda é cedo para calcular o tamanho do estrago. Mas as projeções para a recessão no país variam de uma queda no Produto Interno Bruto (PIB) de 5% a 25% só este ano.

— Dadas as condições atuais, vejo uma queda de 12% do PIB em 2022. E uma taxa de inflação de 20% até o meio do ano. 

Tudo leva a crer que a economia vai encolher para os níveis de 20 anos atrás— disse ao GLOBO Liam Peach, especialista em mercados emergentes da Capital Economics, que calcula uma retração de pelo menos 25% caso novas sanções venham atingir o setor de petróleo e gás.

Pacto ameaçado

O fechamento das operações de mais de 300 empresas estrangeiras na Rússia deve retirar do mercado de trabalho cerca um milhão de profissionais, de acordo com a publicação russa Taki Dela. 

O desemprego está nas contas da Capital Economics, que projeta um aumento do índice de 4%, onde estava antes da guerra, para algo entre 7% e 8% até o final do ano.

Há quem diga que a crise deva tirar de Putin um dos seus maiores trunfos nestas mais de duas décadas no poder: a estabilidade. 

A promessa de que o “o caos dos anos 1990” que se seguiu ao fim da União Soviética jamais se repetiria, associada à garantia de uma melhor qualidade de vida do que naquela época, deu a Putin o apoio da população ao longo de todos esses anos. 

Era uma espécie de acordo tácito. A geração Putin não viveu o que viram seus pais e avós. E este ainda é um dos grandes temores dos russos.

— Naquela época faltava tudo. Acho que agora, se faltar, o país traz da China. Meu medo é a que preço. Por isso tenho comprado mais comida e meus remédios — diz por telefone a aposentada Alexeyva.

No campo econômico, analistas admitem que o momento atual é outro, embora ainda leve um certo tempo para que todas as sanções aplicadas até agora se reflitam os indicadores.

— A situação ainda não me parece tão ruim quanto nos anos 1990, quando a queda do PIB foi de 30%. A economia russa era muito diferente. Havia desabastecimento — afirma Peach.

No campo social e psicológico, porém, a viagem no tempo pode ser de mais de 40 anos.

— Não acho que os anos 1990 sejam a comparação correta. Foi um período difícil e caótico, mas havia pelo menos um sentido de direção, para reformas, abertura para o resto do mundo para a criação de novas oportunidades para as pessoas. 

Era possível ter esperança para muitos, apesar das dificuldades para a vasta maioria da população. O que está acontecendo agora é 1979! — afirma o diretor de Rússia do King’s College de Londres, Samuel Greene, autor de vários livros sobre o país, onde viveu por quatro anos.

É uma referência à invasão do Afeganistão, considerada um dos marcos que conduziu ao fim da URSS.

— É a volta a um tempo em que o país estava mal administrado, isolado globalmente, começando uma guerra que não podia ganhar. Nós sabemos que Mikhail Gorbachev veio seis anos depois de 1979. Mas naquela altura ninguém sabia que isso ia acontecer. Era um período de muita desesperança para muitos. E é isso o que tenho visto agora — conta Greene.

O especialista afirma que muitos russos que deixaram o país entendem que deixaram casas em que viveram por décadas, parentes e vidas que talvez nunca venham a ser retomadas. 

Aqueles que ficaram, por terem parentes mais velhos ou quaisquer outras circunstâncias, entendem que as relações com parte do resto do mundo, que nas últimas décadas tornou-se importante, potencialmente ficou para trás.

Quando anunciou, há duas semanas, que a taxa de juros básica da economia seria mantida nos atuais 20% ao ano, o nível mais elevado dos últimos 20 anos, a presidente do Banco Central russo, Elvira Nabiulina, disse ainda que o país estava suspendendo o sistema de metas de inflação, cujo alvo era de 4%, até 2024. 

Na ocasião, a executiva, uma das mais respeitadas da equipe econômica russa, não respondeu a perguntas, como de costume. Nos últimos dias, circularam boatos de que Nabiulina pedira demissão do cargo por causa da ação militar na Ucrânia, e que Putin teria dito não.

Ações em queda

Para a inflação, já há estimativas de que a taxa ultrapasse os 25% atingidos em 1998, ano do calote da dívida russa. Ainda não se sabe como o quadro econômico afetará o humor da população, que costuma apontar as incertezas econômicas como maior preocupação. 

Pode ser seja o momento de cobrar de Putin a velha promessa feita em 2001. Foi ela que lhe garantiu a carta branca para comandar o país em sucessivas eleições.

Pesquisa do instituto de Pesquisa Yuri Levada realizada em setembro do ano passado revelou que dois terços dos russos preferem ver a Rússia, em primeiro lugar, como “um país com alta qualidade de vida, ainda que não esteja entre as nações mais poderosas do mundo”. 

Este é o maior percentual da história das pesquisas realizadas pelo instituto, que existe desde 1988. Um terço, porém, ainda quer que o país seja uma “grande potência respeitada e temida pelas outras nações”.

Em pronunciamento pela televisão no ultimo dia 16, Putin afirmou que os países do Ocidente, ao impor sanções à Rússia. promoveram uma verdadeira “blitzkrieg econômica”. Nas ruas, o cidadão médio ainda não tem o quadro geral. 

Especialistas tampouco, já que as restrições levam tempo para ser sentidas e os indicadores da economia são publicados com certa defasagem.

O mercado de ações, por exemplo, ficou difícil de acompanhar. Em um esforço para tentar conter o pânico com o conflito, a Bolsa permaneceu fechada por um mês até a última quinta-feira. Reabriu para as transações de um punhado de grandes empresas. 

Mas os índices seguem em queda, liderados pela derrocada das ações da companhia Aeroflot, negociadas aos níveis mais baixos desde 2009. 

A cotação do rublo deu sinais de leve recuperação desde que o presidente afirmou que os países “hostis” deveriam pagar o petróleo e gás que importam na moeda russa, que fechou a semana cotada a 92,04 por dólar, depois de bater 120 por dólar no início de março.


Fonte: O GLOBO

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