Haitianos devolvidos à força a seu país incluem 4.674 crianças, 580 delas brasileiras, mostra relatório

Haitianos devolvidos à força a seu país incluem 4.674 crianças, 580 delas brasileiras, mostra relatório

Documento publicado pela Human Rights Watch alerta para alto risco de violência que deportados enfrentam ao chegar ao país, sem acesso efetivo à proteção ou à justiça

Porto Velho, RO - Após uma viagem tortuosa por quase todo o continente americano, marcada por abusos sexuais, insultos racistas e violência na fronteira com os EUA, um casal de haitianos com dois filhos pequenos desembarcou, algemado, em Porto Príncipe, capital do país que haviam deixado para trás em 2017. 

Ao chegarem da longa jornada fracassada, no entanto, não tinham dúvida: iriam novamente deixar o Haiti, o mais rapidamente possível.

O drama dos haitianos deportados de volta ao país de origem ao buscarem asilo principalmente no Estados Unidos atingiu, de janeiro de 2021 a fevereiro deste ano, 4.674 crianças, quase metade nascida fora do país. 

Dentre elas, 580 são brasileiras, a segunda maior nacionalidade, atrás apenas dos Chile (cerca de 1.600), mostra um relatório publicado nesta quinta-feira pela Human Rights Watch (HRW), que alerta para o alto risco de violência que os deportados enfrentam ao chegar ao país, sem acesso efetivo à proteção ou à justiça.Outros 140 menores deportados nasceram em países como Bahamas, Argentina, México e Venezuela.

— É inconcebível que qualquer governo envie pessoas para o Haiti enquanto o país vive tal deterioração da segurança e um risco aumentado para a vida e integridade física de todos — disse César Muñoz, pesquisador sênior das Américas da HRW. 

— Qualquer pessoa pode ser vítima de sequestros, em qualquer lugar da capital, onde há áreas totalmente controladas por gangues, sem presença da polícia, sem serviço médico ou escolas, que estão fechadas há dois anos.

Os números do relatório, coletados pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), indicam que os EUA devolveram ao país 79% do total de 25.765 haitianos ou filhos de haitianos deportados entre 2021 e 2022. De setembro do ano passado, quando a OIM começou a coletar dados mais detalhados sobre as deportações, até fevereiro deste ano, apenas os EUA devolveram cerca de 2.300 crianças.

Os menores são filhos de haitianos que deixaram o país há vários anos, principalmente após o terremoto de 2010, para tentar a vida em países da América Latina, especialmente no Chile e Brasil. Após anos de certa estabilidade, no entanto, muitas famílias, já com filhos nascidos fora do Haiti, rumaram a caminho do “sonho americano”, onde acabaram deportados e enviados de volta, com base na polêmica norma conhecida como Título 42, criada durante o governo de Donald Trump. 

Parte do Código Sanitário americano, o Título 42 permite ao governo proibir a entrada de pessoas nos EUA quando o Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC) constatar que há “um sério perigo de uma nova doença ser introduzida” no país.

— Os Estados Unidos, que respondem pela grande maioria dos retornos, devem acabar com o uso desnecessário e ilegítimo de um regulamento de saúde pública para expulsões de haitianos — alerta Muñoz.

O presidente Joe Biden chegou a afrouxar as regras, impedindo a detenção e deportação de crianças desacompanhadas, mas voltou atrás no contexto da pandemia do coronavírus. 

No começo deste mês, no entanto, o Tribunal de Apelações dos EUA para o Circuito do Distrito de Columbia ordenou que o governo parasse de usar o Título 42 para expulsar sumariamente famílias com crianças para países onde enfrentariam perseguição ou tortura. A decisão pode entrar em vigor em abril.

Além da deportação forçada, que, segundo organizações de direitos humanos, viola o direito internacional, alguns dos que voltaram para o Haiti acusaram agentes de fronteira dos EUA de levarem suas roupas, telefones, dinheiro e documentos pessoais — uma família disse à Human Rights Watch que um guarda rasgou toda sua documentação. 

Funcionários da OIM em Porto Príncipe também relataram à ONG que tiveram que tratar algumas crianças que chegavam desidratadas.

— Os oficiais de fronteira dos EUA rasgaram nossos documentos pessoais, incluindo as certidões de nascimento chilenas de nossas filhas. 

Nos separam em centros de detenção para homens e mulheres, não tínhamos acesso a chuveiros ou produtos de higiene e recebemos muito pouca comida. As meninas desenvolveram diarreia, mas não receberam assistência médica. Também não nos deixaram chamar um advogado, o consulado haitiano ou solicitar asilo — contou a família à HRW. 

— Após 14 dias, autoridades de imigração nos colocaram em um avião e algemaram nossas mãos, cinturas e tornozelos.

O casal, que viajou sem saber no mesmo avião, conta que o único alívio, ao desembarcar em Porto Príncipe, foi encontrar um ao outro. Lá, receberam ajuda de algumas agências humanitárias — produtos de higiene e um pouco de dinheiro. Depois, foram levados a uma estação de ônibus e abandonados à própria sorte.

— No aeroporto, eles não são informados sobre a localização das embaixadas brasileira ou chilena. As crianças que chegam no Haiti não terão oportunidade de ir à escola. Os pais, que deixaram o país há anos, também não conhecem mais a situação do bairro onde moravam, e muitos já não têm mais contato com familiares. 

Não há qualquer acompanhamento do que acontecerá com elas — conta Muñoz, que esteve no país no fim do ano passado. — São simplesmente deixados ali, em um lugar absolutamente perigoso.

O Haiti vive uma profunda crise política e constitucional. O primeiro-ministro Ariel Henry, suposto chefe de governo, não foi eleito, mas sim nomeado pelo ex-presidente Jovenel Moïse, dois dias antes de seu assassinato, em 7 de julho de 2021. O primeiro-ministro governa por decreto, sem mandato constitucional. O Parlamento também deixou de funcionar e o sistema de justiça mal pode operar.

Além da crise institucional, a situação de segurança no país piorou dramaticamente nos últimos anos. Gangues controlam áreas estratégicas de Porto Príncipe, conhecida como “zonas vermelhas” ou “zonas sem lei”. O controle de áreas costeiras da capital permite que os criminosos recebam armas por mar.

Oficialmente, a polícia registrou 1.615 assassinatos e 655 sequestros no país em 2021, mas a sociedade civil e representantes da ONU afirmam que muitos crimes são subnotificados. A ONG Comissão Episcopal Nacional de Justiça e Paz, por exemplo, relatou 659 assassinatos no ano passado apenas na área metropolitana de Porto Príncipe, não incluindo casos nas “zonas sem lei”. 

Já o Centro de Análise e Pesquisa em Direitos Humanos (CARDH), outra instituição haitiana não governamental, registrou 949 sequestros no país em 2021 — contando apenas casos relatados pela imprensa ou diretamente à organização.

A impunidade para os crimes é a norma. “No Haiti, os juízes ameaçados têm duas opções: deixar o país ou continuar com a investigação e serem mortos por isso”, disse um membro do Conselho Superior de Justiça, órgão que administra o sistema de justiça, à Human Rights Watch.

Dadas as condições de segurança no Haiti, grupos e organizações da sociedade civil que prestam assistência aos retornados expressaram preocupação de que eles correm o risco de sequestro e extorsão pelas gangues, que podem acreditar que eles têm dinheiro para viajar.

— Aqui mataram até o presidente — disse um dos entrevistados ao desembarcar na capital. — Imagine o que eles podem fazer conosco. Não há futuro.


Fonte: O GLOBO

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