Enquanto tropas russas se aproximam de Kiev, vítimas não têm mais ninguém para chorar por suas mortes

Enquanto tropas russas se aproximam de Kiev, vítimas não têm mais ninguém para chorar por suas mortes

Rússia tenta avançar agora pelo leste da capital; apesar de ucranianos conseguirem segurar avanço, muitos moradores já deixaram suas casas

Porto Velho, RO — De longe, o corpo da velha senhora não chamava a atenção. Parecia, de alguma forma, em harmonia com a cena melancólica de um vilarejo vazio às margens de uma guerra. Os disparos das artilharias russas e ucranianas eram cada vez mais raros e pareciam também cada vez mais distantes.

O silêncio das ruas monótonas de Hoholiv, a menos de 50 quilômetros de Kiev, só era rompido pelas rajadas de vento forte, gelado, que sacudiam os galhos ainda secos nesse fim de inverno especialmente frio aqui na Ucrânia.

O corpo estava tombado, como se tivesse caído de uma só vez, num só movimento. A cabeça baixa, as mãos contraídas. Não havia sangue, não havia ferimentos aparentes, não havia sinais de violência. Apenas o corpo de uma senhora com idade avançada caído ao lado de uma casa semidestruída.

A poucos metros dela, um machado com cabo de madeira escura repousava sobre um resto de tronco usado como base para cortar a lenha que aquece as lareiras e as fornalhas nessas casas humildes do interior ucraniano.

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Um pouco mais distante, uma pequena cratera, com cerca de um metro de diâmetro e uns 30 centímetros de profundidade. Foi ali que o projétil disparado pelas tropas russas encontrou seu destino. Os estilhaços da bomba marcaram as paredes da casa simples pintada de branco com uma faixa marrom na fachada. 

O deslocamento de ar destruiu os vidros. A mulher morrera nas primeiras horas da manhã quando caminhava pelo quintal. Deu azar, disse um dos poucos vizinhos que seguia em Hoholiv. Com as batalhas chegando cada vez mais perto, quase todos se foram.

Novo flanco russo

A manhã estava calma. Mas a noite foi violenta. As tropas russas tentam abrir um novo flanco em direção a Kiev pela margem esquerda do Rio Dniéper. Enquanto uma coluna de 60 quilômetros de blindados, caminhões e tanques está estacionada em Irpin, uma outra cidadezinha na área metropolitana de Kiev, tropas rápidas tentam se aproximar da cidade de Brovary, na periferia da capital ucraniana. 

Os combates aqui não têm sido tão violentos quantos os registrados em Irpin e Bucha, no lado direito do Rio que corta Kiev. Mas têm sido cada vez mais frequentes. E cada vez mais as tropas russas se aproximam da área urbana dessa cidade dormitório de cerca de 100 mil habitantes.

Na madrugada de quarta para quinta-feira uma coluna de tanques tentou romper a linha de defesa ucraniana utilizando uma das rodovias que ligam Kiev à fronteira norte com a Bielorrússia. 

Foram uma vez mais parados pelos pequenos grupos de soldados ucranianos que tem utilizado táticas de emboscada e se aproveitado da fartura dos Javelins, os portáteis mísseis anti-tanques que os Estados Unidos têm despejado na Ucrânia desde 2014.

 
Fonte: Institute for the Study of War Foto: Editoria de Arte / O GloboFonte: Institute for the Study of War Foto: Editoria de Arte / O Globo
Operando em pequenos grupos, as forças ucranianas se aproveitam da lentidão dos blindados russos e fazem ataques surpresas. A Rússia já perdeu dezenas de tanques e blindados para esses mísseis que podem ser operados por um ou dois homens e disparados em qualquer lugar e em praticamente qualquer circunstância.

Na entrada de Brovary os soldados ucranianos capturaram um blindado de transporte, um BTR. Ao lado do veículo militar era possível ver os pertences pessoais dos soldados russos. Havia peças de roupa, um pacote de macarrão, chaleiras elétricas, caixas de munição e até sabonetes. 

Mais distante estavam caixas que carregavam munição para bazucas e metralhadoras. Um livro estava jogado entre os pertences dos soldados que conseguiram fugir ou foram mortos no combate. No acesso ao blindado ainda era possível observar marcas de sangue fresca.

— Eu disparei minhas três bazucas, mas para ser honesto uma delas não acertou o alvo. Dois acertaram, mas não fizeram tanto estrago. Mas os russos acho que se apavoraram e começaram a fugir, foi fácil — dizia um soldado ucraniano ao lado do blindado, em um misto de bravata e orgulho, a um grupo de jornalistas estrangeiros que estava no local.

Moradores empedernidos

Apesar da permanente pressão das tropas russas à periferia de Kiev, a capital ucraniana ainda não foi atacada com a mesma violência que outras cidades do país, como Kharkiv ou Mariupol. Até agora as tropas russas não fizeram ataques aéreos ou disparos de artilharia contra a parte central de Kiev. Apesar de vazia, tensa, repleta de bloqueios militares e soldados entrincheirados, Kiev segue intacta.

— O próximo front dessa guerra será aqui em Brovary, é para cá que eles estão vindo — disse Alexey, um cirurgião do hospital geral de Brovary na manhã dessa quinta-feira.

Em Hoholiv, o pequeno povoado bombardeado ao longo da noite de quarta-feira e a manhã de quinta-feira, ninguém se importou em cavar trincheiras.

Quem pode, deixou o local antes mesmo de as bombas começarem a cair. Ficaram alguns empedernidos moradores, na maioria idosos cansados demais para fugir para um destino incerto e um futuro sem previsibilidade. Gente como a velha senhora atingida pelos estilhaços da bomba que caiu em seu quintal.

A noite de quinta-feira já se aproximava e os termômetros marcavam 4,5 graus negativos, no primeiro crepúsculo sem nuvens em quase duas semanas. 

O corpo da velha senhora seguia ali, no mesmo local onde caíra. Os moradores de Hoholiv dizem que o serviço funerário de Brovary considera o local muito perigoso para retirar o corpo. A velha babushka vivia só em um vilarejo cada vez mais solitário. No dia de sua morte, ninguém veio chorar por ela.

Fonte: O Globo

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