Por que a fome não recuou como a miséria no Brasil? Especialistas explicam

Por que a fome não recuou como a miséria no Brasil? Especialistas explicam

Extrema pobreza caiu ao menor nível já registrado, enquanto a fome ainda atinge uma população maior do que em 2013. Explicação vai além do ganho de renda com programas sociais

Porto Velho, Rondônia - A fome recuou no país em cinco anos, mas ainda está acima do patamar de 2013, dez anos antes. A insegurança alimentar — classificação que vai desde a incerteza quanto ao acesso a alimentos no futuro até a falta de comida para todos os moradores — era realidade em 27,6% dos lares em 2023, nos quais 64 milhões de brasileiros não tinham acesso pleno a alimentos para suprir suas necessidades em qualidade e quantidade.

A privação era grave em 4,1% desses domicílios, onde moravam 8,6 milhões de pessoas (incluindo crianças), em famílias que conviviam com a fome. Em 2018, a medição anterior da pesquisa, esta era a situação de 10,3 milhões de pessoas. O percentual de lares sob insegurança alimentar é menor do que o observado em 2017 e 2018 (36,7%), quando o país sentiu os efeitos da recessão, mas é maior que há uma década, quando havia caído a 22,6%.

Os dados foram divulgados poucos dias após a FGV Social mostrar que a extrema pobreza chegou ao menor nível já registrado, de 16,9 milhões em 2023. Mas especialistas ressaltam que, além de as pesquisas não serem comparáveis entre si, uma combinação de fatores explica a fome ter recuado em relação a 2018 e, ainda assim, não ter alcançado patamares menores que há uma década.

Da melhora dos níveis de emprego e renda até a retomada de programas de combate à fome — compromisso firmado por Lula — uma série de fatores motivou o recuo da fome em 2023. Economistas dizem que, para que o fantasma da fome assombre cada vez menos famílias, é preciso acelerar a implementação da política nacional de abastecimento alimentar e incluir desafios como o efeito de mudanças climáticas para alimentos.

Retomada de ação pública

Sandra Chaves, coordenadora da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan), lembra que o teto de gastos no governo Michel Temer congelou investimentos nas áreas sociais e paralisou políticas públicas, incluindo as de acesso a alimentos.

O Programa de Aquisição de Alimentos sofreu cortes em 2017 e foi minguando ao longo do governo Bolsonaro. Em 2022, foram repassados R$ 90 milhões. Em 2023, houve um salto e foram liberados R$ 710 milhões.

— A situação da fome é extremamente sensível a essas oscilações. Agora estamos começando a chegar nessas pessoas com a retomada das políticas públicas, tirando-as da situação extrema para moderada. Mas precisamos de um ciclo virtuoso com política de emprego inclusiva e redução de tributos sobre alimentos da cesta básica — diz ela.

As regiões Norte e Nordeste registraram na pesquisa os maiores percentuais de lares com redução de quantidade e qualidade de alimentos ou risco de fome: 7,7% e 6,2%, respectivamente. No Centro-Oeste e Sudeste, os percentuais foram de 3,6% 2,9%, em ordem. Na outra ponta, apenas 2% dos lares na região Sul estavam sob insegurança alimentar moderada ou grave.

O Pará foi em 2023 o estado com maior proporção de domicílios com insegurança alimentar grave 9,5%, seguido do Amazonas (9,1%), Amapá (8,4%) e Maranhão (8,1%).

O governo do Pará informou que garante segurança alimentar a sete mil famílias em situação de vulnerabilidade, além de contar com o Restaurante Prato Popular, em Belém, com preço simbólico de R$ 2. O estado aderiu ao programa Brasil sem Fome e também incentiva a compra de alimentos de agricultores familiares e os destina a pessoas em situação de vulnerabilidade.

Para Francisco Menezes, consultor de políticas da ActionAid, a retomada de programas sociais junto à melhora econômica, com avanço do emprego formal, possibilitaram o recuo da fome em 2023. Ele lembra que o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), responsável por financiar as merendas escolares das redes municipais, estaduais e federais, estava há cinco anos sem correção de valores pelo governo federal. O orçamento só foi reajustado em 2023, em média, em 36%.

— Estamos defendendo que a implementação da política de abastecimento se acelere porque já se começa a sentir os efeitos das mudanças climáticas sobre a produção e preços dos alimentos. Isso atinge os mais pobres, pois grande parte do orçamento é destinado a comprar comida — explica.

‘Está tudo muito caro’

Sandra dos Santos, uma baiana de 51 anos que trabalha como porteira noturna, voltou a catar alimentos no Ceasa após 21 anos. Com renda de um salário mínimo e tíquete alimentação de R$ 200, ela voltou ontem para casa com tomate, caqui, banana, maracujá e limão:

— Está tudo muito caro. Isso me ajuda porque, em vez de comprar 1 quilo de tomate, já compro mais frango, mais ovo.

Paulo Nierdele, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ressalta que os estoques reguladores de alimentos básicos não foram retomados em 2023 por questões orçamentárias. E o governo deve adotar aumento gradativo para não estimular alta nos preços de alimentos:

— O plano de abastecimento está em fase final de elaboração, mas até que os resultados apareçam nos números, pode levar tempo.


Fonte: O GLOBO

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